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1

O programa “minha casa, minha vida”: continuidades, inovações e retrocessos.
Alexandre J. Romagnoli
1



Resumo: O artigo se concentra nas reais contribuições presentes no Programa “Minha Casa,
Minha Vida” comparativamente à Política de Habitação historicamente construída no Brasil.

Palavras-chave: Política Nacional de Habitação – Programa “Minha Casa, Minha Vida” –
Políticas públicas – Habitação.


Introdução:

Inúmeros são os trabalhos, situados no campo das políticas públicas, que se
dedicaram a analisar a questão habitacional no país. De uma maneira geral, é unânime a
afirmação de que o Estado tem sido incapaz de lidar satisfatoriamente com o problema pela
incapacidade de atender a população de baixa renda, principal responsável pelo alto déficit
habitacional do país.
No entanto, partimos nossa análise do pressuposto de que a questão habitacional é
retomada no país com o início do governo Lula, que passa a viabilizar um processo de mudança
na área, como, por exemplo, a criação de um novo Ministério (Ministério das Cidades), alteração
na regulamentação do setor, além de programas com metas maiores àquelas já encontradas no
país.
Nesse contexto se insere o Programa “Minha Casa, Minha Vida” (PMCMV)
2
que,
apesar de surgir, inicialmente, como uma ferramenta “anti-cíclica” do governo frente à crise
econômica internacional, também destaca-se pela sua proposta social. Com a meta de construir 1
milhão de moradias, sendo parte destas destinada à população de baixa renda (historicamente um
dos principais gargalos da política habitacional) e considerável aporte de recursos do próprio
Orçamento Geral da União (OGU), o Programa ganha relevância e representatividade para a
política habitacional como um todo.
A partir da literatura neo-institucionalista e de políticas públicas, esse artigo mostra, de
uma maneira geral, que o PMCMV inova com relação às questões ligadas ao financiamento e a

1
Mestre em Ciência Política pelo Programa de pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal de São
Carlos (UFSCar), com graduação em Administração Pública pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho –
Unesp.
2
Atualmente o Programa está na sua segunda versão (PMCMV 2). No entanto, este artigo concentra sua análise
apenas na primeira versão do Programa (PMCMV 1), iniciada em março de 2009 e concluída em março de 2012.
2
instrumentalização dos recursos. Porém, intervém timidamente em assuntos já bastante discutidos
no país, como o planejamento urbano e a regularização fundiária.
Primeiramente, a análise se concentrará especificamente no PMCMV e sua relação com a
Política Habitacional Brasileira. Esta parte está organizada a partir da interação do Programa com
três principais variáveis: a Habitação de Interesse Social, a Habitação de Mercado e a construção
de cidades. O propósito é exatamente apresentar e discutir os pontos de destaque do Programa e
sua contribuição, ou não, para a Política de Habitação do país.
Em seguida é apresentado um breve balanço da Política Habitacional do governo
Lula comparativamente à política implementada anteriormente - basicamente a Política do
governo Fernando Henrique Cardoso (FHC). Pretende-se, mesmo que rapidamente, apontar
mudanças mais gerais que extrapolam a análise centrada no Programa e que contribuem para a
compreensão da política atual.

O programa “minha casa, minha vida”
Em fins de 2008, a crise internacional adquire contornos mais claros e preocupantes.
Este fato influencia a conjuntura nacional, fazendo com que o ano de 2009 se inicie sob retração
econômica e com registro de uma desaceleração do PIB. A partir de então, o Governo Federal,
além de expedir medidas de incentivo à liquidez na economia doméstica (mudança nas regras do
recolhimento sobre depósitos compulsórios) e das políticas de estabilização cambial (leilões de
parte das reservas cambiais, com o objetivo de estabilizar a cotação do dólar), passa a criar
estímulos diretos à atividade econômica.
Parte desses estímulos se concentrou no setor da construção civil e infraestrutura. Isto
porque o setor apresenta relevante papel tanto na geração de emprego quanto no comportamento
do PIB. Apenas para ilustrar essa importância, em julho de 2009, o setor foi responsável pela
criação de 32.100 postos de trabalho; em agosto do mesmo ano, mais 45 mil empregos foram
criados - recorde de contratação do setor - mantendo o ritmo forte nos meses seguintes
3
. Como
afirma Maricato (2009), o estímulo a este setor cria demandas tanto “para trás” (ferro, vidro,
cerâmica, cimento, areia, etc) como “para frente” (eletrodomésticos, mobiliários), gerando,
conseqüentemente, crescimento significativo na oferta de empregos.

3
Informação retirada do Cadastro Geral de Empregos e Desempregos – CAGED do Ministério do Trabalho e
Emprego.
3
Apesar do cenário econômico, de um modo geral, apresentar melhoras, internamente,
as medidas iniciadas pelo Governo contra a crise também apresentaram efeitos no PIB, que em
comparação com o quarto trimestre de 2008, cresceu 4,3% no mesmo trimestre de 2009.
Enfim, somando a crise internacional que passa a influenciar a conjuntura econômica
do país à decisão do Governo em combatê-la, privilegiando o setor da construção civil (dentre
outros), temos o impulso necessário para a constituição do Programa “Minha Casa, Minha Vida”.
Claro que não podemos ignorar sua face social, mas é exatamente como uma ação anticíclica que
o programa é amplamente reconhecido inicialmente.
Com a aprovação da Medida Provisória nº 459, em março de 2009 o Programa passa
a ser implementado. Com investimentos da ordem de R$ 34 bilhões (sendo R$ 25,5 bilhões do
Orçamento Geral da União, R$ 7,5 bilhões do FGTS e R$ 1 bilhão do BNDES), o Programa
prevê a construção de um milhão de moradias no prazo de dois anos, além da promessa de
geração de emprego, renda e sustentação econômica para um país temeroso da crise.
A tabela a seguir apresenta os recursos e suas fontes previstos no Programa:
Quadro 1 - Recursos e Fontes do PMCMV

PROGRAMA UNIÃO FGTS TOTAL
Subsídio para moradia 16,0 - 16,0
Subsídio em financiamentos do FGTS 2,5 7,5 10,0
Fundo Garantidor do FGTS 2* - 2,0


PROGRAMA UNIÃO FGTS TOTAL
Financiamento à Infraestrutura 5,0 - 5,0

PROGRAMA UNIÃO BNDS TOTAL
Financiamento à Cadeia Produtiva - 1,0 1,0

TOTAL 34 Bilhões
Fonte: Folder de divulgação do PMCMV
R$ bilhões
* 1 bilhão para refinanciamento de prestações;
1 bilhão para seguro em financiamentos do FGTS.


Primeiramente, como destacado pelo próprio Governo, o foco está na população de
baixa renda. Através de subsídios, o Programa promete atingir essa faixa da população,
4
responsável por cerca de 90% do déficit habitacional do país. Isto se dará através de melhores
taxas de juros em financiamentos, além da utilização do Fundo Garantidor que cobrirá possíveis
inadimplências justificadas.
O Programa apresenta a seguinte classificação de subsídios por grupos de
atendimento
4
:
1) Famílias com renda até 3 salários mínimos (S.M.): subsídio máximo (ou seja, a
maior possibilidade de auxílio fornecida pelo programa com recursos do próprio orçamento), com
isenção do seguro, além de pagamento de prestações mensais limitadas a 10% da renda por um
período de dez anos (120 meses);
a) Para os municípios acima de 50 mil habitantes o Programa prevê a construção ou
requalificação de empreendimentos por meio das empresas do setor da construção civil,
preferencialmente em parceria com o poder público local, que entra com a contrapartida do
terreno, infraestrutura ou recursos financeiros.
Os projetos são apresentados pelas empresas do setor da construção civil junto ao
agente financeiro, que aprovará a obra observadas as diretrizes estabelecidas pelo Ministério das
Cidades, tais como especificação mínima de unidades e valor máximo de aquisição da unidade
habitacional. Este grupo concentra recursos não onerosos do OGU na ordem de R$ 14 bilhões.
b) Já para os municípios até 50 mil habitantes, o Programa subsidia a produção de
novas habitações em parceria com estados e municípios. Dá-se pela oferta pública de R$ 1 bilhão
de recursos do OGU, através de agentes financeiros pertencentes ao Sistema Financeiro
Habitacional (SNH) interessados em promover a execução dos projetos.
c) É possível também o atendimento às famílias com participação de entidades sem
fins lucrativos, como exemplo as cooperativas. Prevê a produção e a aquisição de habitações de
acordo com os moldes dos municípios de até 50 mil habitantes, exceto pelo fato de que a
organização da demanda é feita pela própria entidade. Prevê R$ 500 milhões de recursos do
OGU.
d) Por fim, há o atendimento aos agricultores e trabalhadores rurais pertencentes a
esta faixa de renda. É possível a aquisição ou produção de moradias e, ainda, a reforma para
famílias com renda superior. São utilizados recursos do FGTS e R$ 500 milhões do OGU.

4
Folder de divulgação do Programa e BRASIL, Ministério das Cidades. Avanços e Desafios: Política Nacional de
Habitação, 2010.
5

2) Famílias com renda entre 3 e 6 S.M.: aposta no incentivo ao crescimento do
mercado imobiliário por meio do SFH. Com subsídio parcial (complementação de renda) nos
financiamentos, redução dos custos do seguro e acesso ao Fundo Garantidor, os financiamentos
podem chegar ao máximo de 30 anos com comprometimento de renda de 20%. Foram alocados
para este grupo R$ 7,5 bilhões do FGTS e R$ 2,5 bilhões do OGU.

3) Famílias com renda de 6 a 10 S.M.: receberão estímulos à compra da moradia
com redução dos custos do seguro (danos físicos ao imóvel, morte e invalidez permanente) e
acesso ao Fundo Garantidor.
A tabela a seguir apresenta a proposta do Programa referente à produção de unidades
de acordo com os grupos familiares:

Quadro 2 - Unidades habitacionais de acordo com as faixas de renda

Fonte: Folder de divulgação do PMCMV.

Enquanto todos os outros programas e linhas de ação utilizadas pelo governo para
trabalhar com as questões urbanas e habitacionais focam-se em objetivos precisos e bem
definidos, o Programa MCMV apresenta um “mix” de programas, com objetivos econômicos,
sociais e de reestruturação do setor.
Praticamente, todos os outros programas estão desenhados para atender uma faixa de
renda e grupo de família especificamente, já o PMCMV, apresenta uma estrutura que prevê
atender famílias de zero a dez salários mínimos, componentes tanto do grupo vulnerável da
sociedade e incluído no atendimento de Interesse Social, como também permite auxílio àqueles
que podem ser beneficiados pelas linhas de crédito oferecidas pelo mercado. Um único Programa
6
prevê ações baseadas na relação com entidades da sociedade civil, entes da federação e agentes
econômicos; possibilidades para as áreas urbanas e rurais; entre outras características.
O Programa também se destaca no contexto da política habitacional do país no que
diz respeito às suas propostas e recursos. Desde o Banco Nacional Habitação (BNH)
5
não havia o
comprometimento do governo com a oferta de moradias que fizesse frente à realidade do déficit
do país. O número de um milhão de moradias (ainda bastante abaixo com relação ao déficit de
5,6 milhões) se destaca e dá ainda mais notoriedade ao Programa.
A utilização de recursos do próprio Orçamento Geral da União, apesar de já
realizados anteriormente durante o governo Itamar e FHC, é retomada com valores bem acima do
já despendido na área. Além do mais, como afirma Maricato (2011), o Programa é uma ação
econômica acertada, ao remeter à construção civil o foco da tarefa de geração de postos de
trabalho e instrumento de enfrentamento à crise internacional.

Continuidades, inovações e retrocessos
a. O PMCMV e a Habitação de Interesse Social.
Como já mencionado anteriormente, o PMCMV estrutura sua atuação a partir de
grupos de famílias separados de acordo com suas rendas. O primeiro grupo, de menor poder
aquisitivo, é constituído por famílias com renda de até no máximo três salários mínimos (R$
1.350,00). E, como já mencionado também, é o grupo responsável por cerca de 90% do déficit
habitacional do país.
Diante desse fato, o Programa surge de maneira destacada no cenário geral ao propor
400 mil unidades habitacionais a esse grupo específico. Esse número é uma inovação frente o
histórico da Política Nacional de Habitação do país. Desde o BNH não houve no Brasil ações
direcionadas à questão habitacional com proposta semelhante e implementada de uma única vez.
Inicialmente, o fato indica que há o reconhecimento por parte do governo de que as
ações nessa área necessitam ser direcionadas a esse grupo de famílias, haja visto que o mercado -
a forma predominantemente utilizada pelo Estado para prover moradias no país até então, não
tem conseguido responder satisfatoriamente a demanda.

5
Criado pela Lei 4.380 de 21/08/1964, foi o principal órgão da política habitacional do período (1964 – 1986),
edificado com o objetivo de ser o orientador, disciplinador e controlador de todo o sistema, incluindo a questão do
saneamento básico.
7
No entanto, enquanto o Programa objetiva construir 400 mil unidades para aqueles
que pertencem ao grupo 1, também se propõe a subsidiar outras 600 mil às famílias pertencentes
aos grupos de renda entre 3 a 10 salários mínimos. A tabela a seguir sintetiza essa informação:

Tabela 1- Metas do Programa de acordo com as faixas de renda

Fonte: BONDUKI, 2009, p. 13.

A tabela apresentada relaciona as metas do programa com a composição do déficit
habitacional. Enquanto o grupo de menor renda (até R$ 1.395,00), que representa cerca de 90%
do déficit habitacional, é beneficiado pelo programa com apenas 40% do total de unidades,
impactando apenas em 6% o respectivo déficit, os outros grupos, além de serem pouco
responsáveis pelo índice do déficit habitacional no país, são beneficiados com os outros 60% da
meta do Programa, representando uma alteração real na sua necessidade de 93% e 95%.
Segundo Bonduki (2009) esse desenho do Programa é pouco expressivo para aqueles
que são mais necessitados, enquanto que para os outros grupos, em que o déficit é reduzido, a
meta proposta pode não só zerar suas necessidades como atender à demanda demográfica ou, até
mesmo, financiar uma segunda moradia (p.14).
A professora Schor (Faculdade de Economia e Administração / FEA-USP) também
alerta para a situação das famílias com renda abaixo de R$ 600,00 que, dificilmente, conseguirão
manter um pagamento mínimo de R$ 50,00 como prevê o Programa. Afinal, despesas como
transporte, água, gás, energia e alimentação já são suficientes para comprometer seu orçamento.
Dentro da mesma problemática está a população moradora de rua, que não pode arcar sequer com
o mínimo instituído pelo Programa (MARICATO, 2011).
8
O atendimento a partir de grupos específicos apresentado pelo Programa é uma
estratégia prevista no PlanHab
6
. No entanto, essa estratégia foi adotada de maneira parcial pelo
Programa, que a utiliza pautada apenas na variável renda familiar, enquanto que a proposta do
PlanHab vai além dessa variável
7
. Essa decisão de atender os grupos a partir, somente, de sua
renda torna-se problemática dada a variação do salário mínimo ocorrida durante o próprio
governo Lula. “O salário mínimo teve reajuste nominal de 155% e aumento real de 73% (acima
da taxa de inflação calculada pelo INPC/IBGE) de janeiro de 2003 a março de 2010”
(MARICATO, 2011, p.34). Essa divisão acaba não representando fielmente a realidade, criando
uma disfunção na aplicação justa dos recursos. Além de, como já mencionado anteriormente,
manter excluído do Programa aqueles que não possuem renda.
No que diz respeito aos subsídios fornecidos pelo Programa, mais um vez, o “Minha
Casa, Minha Vida” aplica uma premissa presente no PlanHab e uma reivindicação dos
movimentos populares urbanos já desde a Constituinte. Consiste na utilização de recursos do
OGU que caracteriza, certamente, um dos principais destaques do Programa. Diante de um
contexto histórico de políticas habitacionais que embasaram quase que totalmente as suas
principais ações na área em fundos com necessidade de retorno e auto-sustentação (destaca-se
aqui o FGTS), a aplicação de recursos do orçamento vislumbra a possibilidade de uma mudança
de paradigma na concepção de política habitacional no país.
Como nos mostra Bonduki (2009), de acordo com os números encontrados nos
últimos anos, há uma tendência na utilização dos recursos do OGU. Esse fato se torna mais claro
com o lançamento do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) no ano de 2007. O gráfico
abaixo demonstra essa informação:





6
[este plano] “visa atender aos objetivos da Política Nacional de Habitação, com a universalização do acesso à
moradia digna, em particular para a população de baixa renda, por meio de uma política de subsídios, bem como
reforçar a capacidade institucional dos agentes públicos, privados e sociais, e buscar a ampliação das fontes de
recursos” (BRASIL, 2010a, p.25).
7
Ao invés de se pautar apenas na variável renda para agrupar demandas, o plano cria cinco grupos de atendimento,
olhando para as seguintes condições: capacidade de acessar um financiamento, considerando a renda familiar e per
capita e a análise da cesta de consumo; tipologia de municípios, relacionada com o funding adequado a cada
situação, visando a montagem do modelo de financiamento e subsídio.
9
Gráfico 1 - Recursos do OGU para a produção habitacional


Fonte: BONDUKI, 2009, p.11.
R$ bilhões

Apesar do principal objetivo do PAC ser a concretização de grandes obras de infra-
estrutura, há a inclusão entre seus componentes de um programa de caráter social denominado
Urbanização de Assentamentos Precários que destina recursos para o setor da habitação. Desde
então, o aumento dos recursos provenientes dos cofres públicos aplicados nessa área se tornam
evidentes, criando uma inovação com relação à Política passada, além da possibilidade de início
de uma nova trajetória na Política Habitacional.
Nesse contexto, o PMCMV reafirma essa tendência. Além dos recursos alocados no
PAC para a área habitacional, é previsto no Programa R$ 25,5 bilhões do OGU para sua
implementação, R$ 16 bilhões somente para a baixa renda. Com isso há a confirmação da noção
de que para se enfrentar adequadamente a questão habitacional no país há a necessidade de outros
recursos além daqueles ligados a fundos baseados na premissa da auto-sustentação financeira.

“Além de reduzir o déficit habitacional e contribuir para diminuir os riscos de
impacto da crise internacional na economia brasileira, o programa Minha Casa,
Minha Vida também trouxe à tona o fato de que o problema da habitação para a
população de baixíssima renda (até três salários mínimos) somente será
enfrentado se houver um grande aporte de recursos públicos” (Revista Brasileira
da Habitação, 2009, p.10)

10
Nesse sentido, o PMCMV tem colaborado com o processo de votação da Proposta de
Emenda à Constituição denominada PEC da Moradia Digna (PEC - 285/08). A proposta,
igualmente ao que prevê o PlanHab, pede a vinculação de 2% das receitas da União e 1% das
receitas dos estados, Distrito Federal e dos municípios, durante vinte anos
8
. Apresentada
inicialmente por oito deputados
9
de diferentes partidos e subscrita por 179 parlamentares,
atualmente, a PEC se encontra analisada e aprovada por unanimidade pela Comissão Especial
criada na Câmara dos Deputados
10
.
A PEC da moradia tem reunido inúmeros atores e esforços em torno da sua
aprovação
11
. Representantes de movimentos sociais, centrais sindicais, presidentes de Cohabs,
secretários de habitação e empresários do setor da construção civil vêm se mobilizando e
argumentando sobre a importância dessa nova medida no setor
12
. Dentre os argumentos está o
fato de que o crescimento vegetativo levará nosso país um déficit de 23 milhões de novas
unidades habitacionais em quinze anos, o que só pode ser enfrentado adequadamente com
políticas de longo prazo, e não políticas de governo.
Segundo o deputado relator Zezéu Ribeiro (PT-BA), a vinculação de recursos
prevista na PEC proporcionaria a base necessária para a intervenção no setor no longo prazo, a
exemplo do que já ocorre com as áreas de saúde e educação.
13
A declaração dada por Mounir
Chaowiche, presidente da Associação Brasileira de Cohabs, retoma a afirmação do relator:


8
“A proposta original previa o benefício por 30 anos ou até que acabasse a carência por moradias adequadas no
País. O relator, porém, achou melhor reduzir esse período porque, segundo ele, graças a iniciativas como o
programa "Minha Casa, Minha Vida" o problema de moradia no País pode ser resolvido ao longo das próximas
duas décadas” (União Nacional por Moradia Popular. Disponível em
http://www.unmp.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=323:pec-da-moradia-digna-e-aprovada-
na-comissao-especial-&catid=57:campanha-moradia-digna&Itemid=69. Jan/ 2012).
9
Ângela Amin (PP-SC), Arnaldo Jardim (PPS-SP), Fernando Chucre (PSDB-SP), Luiz Carlos Busato (PTB-RS),
Luiza Erundina (PSB-SP), Nelson Trad (PMDB-MS), Paulo Teixeira (PT-SP) e Zezéu Ribeiro (PT-BA), relator da
proposta.
10
É importante destacar que a Comissão Especial criada na Câmara dos Deputados já é uma segunda fase do
processo de votação de uma PEC. A mesma já foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania
(CCJC) da Câmara dos Deputados e agora segue para ser votada em dois turnos. Em seguida para o Senado onde
também deve ser votada em dois turnos.
11
Atualmente, existe uma campanha nacional de apoio à PEC da Moradia coordenada por Miguel Sastre da CBIC. A
Campanha se desenvolve no site www.moradiadigna.org.br, que conta com o apoio de inúmeras entidades auxiliando
a difusão das ideias presentes na PEC. Representa também a união dos vários atores da Política Nacional de
Habitação.
12
O anexo C apresenta uma relação de entidades comprometidas com a PEC da Moradia Digna.
13
Entrevista dada a Revista Brasileira da Habitação. Ano 1, nº1, dezembro/2009.
11
Com a vinculação de percentuais do orçamento dos governos, a alteração de
artigo constitucional vai permitir que se crie uma fonte de recursos compatível
para o enfrentamento do déficit e o atendimento das novas demandas. ‘Em 20
anos, teremos tempo suficiente para equacionar o déficit e passarmos a ter um
atendimento adequado às novas demandas’ (Revista Brasileira da Habitação,
2009, p.12).

Diante desse contexto, o PMCMV e seu significativo aporte de recursos do OGU é
emblemático tanto para aprovação da PEC como para uma redefinição e inovação na Política
Nacional de habitação no Brasil. O sucesso do Programa implicará fortemente na nova trajetória
que começa a se traçar a partir da utilização de recursos não retornáveis, significando uma
mudança na concepção da Política de Habitação do país. Em outras palavras, significa dizer que
se o modelo implementado pelo Programa for exitoso, o mesmo deixa de ser conjuntural para se
tornar estrutural e de longa duração.

Se bem-sucedido, o plano se constituirá em um grande capital político para
quem o levou a cabo, influenciando futuras administrações a seguirem uma
política no mesmo sentido. Seria estabelecido o que engenheiros, economistas e
cientistas políticos chamam de dependência de trajetória (path dependence).
Trata-se de um padrão – tecnológico, econômico ou político – que não
possibilita mudanças sem que se incorra em altos custos (DIAS, 2009, p.5).
14


No que diz respeito à forma como esses recursos são instrumentalizados e revertidos
à sociedade, há o nítido predomínio da utilização da indústria da construção. O PMCMV, quase
que em sua totalidade, pauta sua atuação tanto na indústria da construção civil como no mercado
imobiliário, prevendo apenas R$ 500 milhões para as entidades sem fins lucrativos (aqui se lê a
participação efetiva dos movimentos populares através dos mutirões, autogestão, empreitadas,
cooperativas, etc).
Segundo atores da construção civil e o próprio governo, isso é explicado pela
capacidade que o setor possui de enfrentar a conjuntura econômica.

É inegável que a construção civil ajudou o país a vencer a apatia econômica
provocada pela crise mundial. Um dos números que melhor exemplifica essa
afirmação vem do mercado de trabalho. Entretanto, o setor também sentiu os
impactos da turbulência da economia mundial. As atividades declinaram
especialmente a partir de setembro de 2008 [...]. No meio da dificuldade geral, o

14
A noção de path dependy é retomada e aprofundada a seguir quando realizamos um balanço geral da Política
Habitacional do governo Lula.
12
programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) trouxe a esperança de volta,
dando um novo impulso ao setor (CBIC, 2009).

Soma-se ao argumento a incompatibilidade existente entre a dificuldade do poder
público (sobretudo municipal) na aplicação de recursos e execução dos programas, ineficiência,
falta de quadros, burocratismo, restrições legais e fiscais, licitações demoradas, órgãos de
fiscalização, etc, com a necessidade de uma ação anticíclica que, consequentemente, deve
responder rapidamente à realidade (ARANTES e FIX, 2009). Além do mais, deve-se considerar a
ausência de rumos que o setor vinha vivenciando há algum tempo.
Nesse ponto, o PMCMV dá continuidade ao modelo de intervenção costumeiramente
aplicado no país. A intervenção permanece pautada na iniciativa privada contribuindo para a
mercantilização do bem moradia, sendo que o mesmo deveria ser assegurado como direito social.
Para Evaniza Rodrigues (liderança da União dos Movimentos de Moradia), o principal problema
do Programa é a permanência do “pensamento único” no que diz respeito à habitação. Diz que o
direito à moradia se faz de diversas formas, não apenas construindo casas, mas recuperando
prédios, por exemplo. “Com tanto dinheiro, esta seria a oportunidade de mudar a moradia
popular no Brasil. No entanto, se faz mais do mesmo”
15
.
Apesar do PlanHab prever uma gama de possibilidades de obtenção de moradias a
preços mais reduzidos, como lotes urbanizados e/ou material de construção com assistência
técnica, o que potencializaria a capacidade de atendimento da população de mais baixa renda, o
PMCMV “fixou-se apenas na produção de unidades prontas, mais ao gosto do setor da
construção civil” (BONDUKI, 2009, p.13).
Esse fato se desdobra em outras análises quando, adiante, aprofundarmos a
capacidade do Programa em tocar pontos essenciais e problemáticos das nossas cidades, como
especulação e valorização imobiliária promovidos pelo predomínio dos interesses privados – aqui
lê-se mercado imobiliário e construtoras.
O Programa também não apresenta canais específicos de participação. Apesar do
governo Lula ser uma referência na institucionalização de canais democráticos, como
Conferências e a criação de conselhos, o Programa “Minha Casa, Minha Vida”, em sua
importância e relevância para o setor, além de atuar minimamente em parceria com os

15
Fala retirada do debate realizado pelo Instituto Polis a respeito do PMCMV. Disponível em
http://www.metodista.br/gestaodecidades/noticias/debate-organizado-pelo-instituto-polis-discute-pacote-
habitacional-do-governo. Acesso em 17 de Jan/2012.
13
movimentos populares, não apresenta um canal específico de diálogo e interação com a
sociedade. Segundo o próprio decreto regulamentador do Programa, há a previsão de um comitê
de acompanhamento, no entanto, formado exclusivamente por integrantes do governo
(ARANTES e FIX, 2009).
O Programa também é falho ao reunir os seus recursos no FAR (Fundo de
Arrendamento Residencial), um fundo menos regulamentado, secundário e sem conselho, sendo
que o indicado seria a utilização do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS),
devidamente regulamentado e provido de conselho estruturado e atuante.
Finalmente, o PMCMV, no que diz respeito a sua relação com a Habitação de
Interesse Social e a Política Nacional como um todo, apresenta continuidades, rupturas e algumas
poucas inovações e possibilidades de mudanças. Ao mesmo tempo em que mantém a forma
normalmente encontrada de intervenção, baseada na iniciativa privada, rompe com maus
“costumes” e mostra ênfase e atenção à camada de baixa renda do país
16
. No mesmo sentido, põe
em prática uma demanda antiga pela utilização de outras fontes de recursos, como o OGU,
vislumbrando uma mudança de paradigma na política habitacional do país.

b. O PMCMV e a Habitação de Mercado
A relação do PMCMV com a Habitação de Mercado dá-se, principalmente, a partir de
duas principais iniciativas: o aumento da concessão de benefícios e a possibilidade de utilização
do Fundo Garantidor.
De acordo com Programa, os grupos que possuem renda de 3 a 10 salários mínimos
devem ser atendidos pelo mercado através das linhas de financiamento existentes. No entanto,
esse grupo (3-10) é ainda subdividido em outros dois sub-grupos, com atendimento diferenciado:
3 a 6 salários mínimos e de 6 a 10 salários mínimos.

16
O atingimento da meta de 1 milhão de moradias contratadas pelo PMCMV foi comemorado pelo governo na
cidade de Salvador / BA, através do pronunciamento do próprio presidente Lula, em seu último evento público.
Nisso, incluem-se as 400 mil unidades destinadas à baixa renda. Foram contratadas 1.005.028 unidades. (Disponível
em http://www.cidades.gov.br/ Acesso em dez/2010). No entanto, é necessário ressaltar que a contratação de
moradias não implica, necessariamente, na entrega das mesmas. O acompanhamento preciso da produção e entrega
de unidades não é realizada nesse trabalho visto que o objetivo não é fazer uma avaliação do Programa
acompanhando o alcance de metas, mas sim a sua formulação e comparação com a trajetória da Política Habitacional
Brasileira.
14
O último grupo (6-10), mesmo sendo considerado capaz de assumir um
financiamento junto às instituições financeiras, é beneficiado pelo Programa com a possibilidade
de utilizar o Fundo Garantidor e receber uma redução nos custos do seguro (danos físicos ao
imóvel, morte e invalidez permanente). Já o grupo de 3 a 6 salários mínimos possuem outras
possibilidades que serão focadas e destacadas nessa seção, isso porque as consideramos de maior
relevância frente à Política Nacional como um todo.
Uma dessas possibilidades é o aumento de subsídio previsto no Programa. Estes são
repartidos entre as Regiões Metropolitanas, as Cidades com mais de 100 mil habitantes e as
cidades de 50 a 100 mil habitantes. A tabela a seguir organiza essas informações:

Quadro 3 - Aumento do subsídio para o grupo de 3 a 6 salários mínimos

Fonte: Folder de divulgação do Programa.
R$ Milhares

O montante de subsídios concedido pelo governo para esse grupo de renda,
anteriormente ao PMCMV, é representado pelas colunas “Atual” da tabela acima. Paralelamente,
com o início do Programa, esse montante é alterado, exatamente como demonstrado nas colunas
“Novo”.
O principal destaque está nessa alteração, que representa um aumento significativo
dos subsídios conferidos às famílias com 3 e 4 salários mínimos, além do surgimento de recursos
às famílias com 5 e 6 salários mínimos. Os subsídios são progressivos, ou seja, quanto menor a
renda, maior o nível de subsídio. No geral, além do incremento nos subsídios, esse modelo de
auxílio não é uma inovação, mas apenas a melhoria de uma prática que já vem sendo utilizada
pelo governo há algum tempo. Em suma, é uma ação embasada no processo de reestruturação do
sistema de habitação de mercado que passa a acontecer a partir do governo Lula. Afinal, torna-se
15
vantajoso inserir as famílias integrantes do SFHIS nessa estrutura beneficiada por um novo
contexto.
17

O que é importante destacar é que esse incremento nos subsídios conferidos pelo
Programa também vem ao encontro da realidade da chamada nova classe C, ou “nova classe
média”, que passa representar atualmente cerca de 52% das famílias brasileiras. Segundo Navarro
(2009), essa nova classe foi a que mais cresceu no Brasil durante a última década, tornando-se
significativa para o futuro do país. Compreendê-la e incluí-la na economia de mercado se tornam
essencial para ações voltadas para o desenvolvimento do país (p.10). Dentre as principais
características dessa classe está a instabilidade econômica, o baixo grau de formação (nível
médio incompleto) e a atuação profissional predominantemente incluída na informalidade. Esses
fatos, certamente, colaboram com a iniciativa e a necessidade de intervenção do Estado a seu
favor.
Seguindo essa linha de raciocínio, podemos afirmar que esse modo de intervenção
implementado pelo Programa (de um Estado facilitador do sistema privado a partir da
complementação de renda), permite ao Estado se focar naqueles mais necessitados (0 a 3 salários
mínimos). No entanto, como já demonstrado, para esse grupo específico - que realmente recebe
maiores benefícios - o modelo de intervenção permanece pautado no modelo privado e no
trabalho das construtoras, que de certo modo, reproduz o papel do Estado de facilitador de um
sistema privado de produção de moradias.
O segundo ponto destacado é a utilização do Fundo Garantidor. Em poucas palavras,
o Fundo fornece garantia de crédito de forma a reduzir o risco das operações dos agentes
financeiros. O Fundo é composto por três fontes de recursos específicas: 1) recursos do OGU (R$
2 bilhões); 2) o pagamento de cotas pelos agentes financeiros de 0,2% do valor dos
financiamentos; e 3) os rendimentos obtidos com a aplicação das disponibilidades financeiras e
os recursos provenientes da recuperação de prestações.
O Fundo, de natureza privada e gerido pela CEF, está destinado a atender as famílias
com renda de 3 até 10 salários mínimos, porém, é considerado viável até o limite de 600 mil
contratos de financiamento. Seus principais objetivos são a cobertura de atrasos nos
financiamentos, em caso de desemprego e redução temporária da capacidade de pagamento; do

17
O novo contexto refere-se a um ambiente econômico estável, com segurança jurídica aos incorporadores,
construtores e investidores (lei 10.931/04), às melhorias do crédito para pessoas físicas a partir de redução de juros e
o aumento de prazos, etc.
16
saldo devedor, em caso de sinistro; das despesas relativas à recuperação de danos físicos ao
imóvel.
No caso da cobertura de prestações, o fundo possui a seguinte regra: a) para famílias
com renda acima de 8 salários mínimos cobre 12 prestações; b) famílias com renda entre 5 e 8
salários mínimos, 24 prestações; e c) para famílias com renda até 5 salários mínimos, cobre até
36 prestações.
O mutuário somente tem acesso ao Fundo Garantidor após o pagamento de seis
meses do financiamento. Preenchido esse pré-requisito, o mutuário está autorizado a utilizar o
Fundo e passar a pagar apenas 5% de sua prestação até que consiga retomar a situação econômica
que permitiu sua inclusão no Programa (respeitando, claramente, a prestação de contas a cada 3
meses e o prazo máximo de permanência ditado pelo grupo de renda no qual está inserido).
Caso o mutuário consiga retomar sua fonte de renda e sua capacidade de pagamento,
a prestação é retomada e o financiamento recalculado de acordo o novo débito. Do contrário, caso
prescreva o prazo previsto de utilização do Fundo e o mutuário não retome sua capacidade de
pagamento, a dívida é executada e o imóvel retomado. Lembrando que essa possibilidade de
retomada do imóvel é resultado da lei 10.931/04 de segurança econômica e jurídica concedida ao
mercado financeiro, já mencionada nesse texto.
Apesar do Fundo Garantidor não ser uma exclusividade e nem uma novidade do
PMCMV
18
, o mesmo é utilizado de maneira mais enfática e com a diferença de recursos públicos
(OGU) na sua manutenção (R$ 2 bilhões). Desse modo, o Fundo Garantidor é reinterpretado no
contexto da Política Habitacional através do PMCMV, atingindo lugar de destaque e importância
para o êxito do Programa.
De maneira análoga à utilização dos recursos do Orçamento Geral da União, o Fundo
Garantidor, se bem sucedido, tende a se perpetuar no modelo de intervenção do Estado na área,
passando possivelmente a representar um instrumento de política habitacional de Interesse Social.
Porém, antes precisa vencer alguns desafios, como demonstrar sustentabilidade financeira e
firmar-se como um instrumento junto aos agentes financeiros.
Por fim, no âmbito da habitação produzida pelo mercado, ao mesmo tempo em que o
PMCMV viabiliza uma proposta do PlanHab de estímulo e reestruturação do sistema de mercado

18
O Programa Crédito Solidário, por exemplo, possui um Fundo Garantidor. No entanto, o Fundo é mantido com
recursos dos associados do programa (IPEA, 2007).
17
a partir da possibilidade de subsídios e, consequentemente, de expansão do crédito, apresenta a
possibilidade de incorporação de um novo instrumento a esse sistema: o Fundo Garantidor.

c. O PMCMV e a cidade
Diferentemente de outros bens produzidos no sistema capitalista, a moradia é
especial. Isso porque está atrelada a terra, ou seja, cada nova moradia pede um novo pedaço de
terra para sua realização. Porém, não se trata de qualquer tipo de terra, mas sim daquela
urbanizada, ligada à rede de água, energia, esgoto, com acesso a transporte, educação, saúde,
lazer, etc. Resumidamente, cada unidade habitacional requer um pedaço de cidade.
No Brasil, a maior parte da população de baixa renda está excluída da cidade,
ocupando o que lhes “resta”, que é mais barato frente a forte valorização e especulação
imobiliária que ditam a formação das nossas cidades atualmente. Uma expressão utilizada por
Maricato (2011) ao abordar o assunto ilustra claramente essa realidade: o “nó da terra”.
Entretanto, desde 2001, possuímos uma das mais avançadas legislações urbanísticas
do mundo: o Estatuto da Cidade (lei 10.257/01). Nele, assim como na Constituição Federal de
1988, está prevista a função social da propriedade que deve ser aplicada a partir dos Planos
Diretores. A função social da propriedade é atendida quando a propriedade urbana “cumpre às
exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano direitor”. Em poucas
palavras, é a substituição da noção particularista da propriedade pelos interesses da coletividade.
Até outubro de 2006
19
foram elaborados e aprovados Planos Diretores nas Câmaras
Municipais de 1.683 Municípios
20
. Porém, cerca de 70% desses delegaram a regulamentação dos
seus Planos Diretores a leis específicas, o que em outras palavras significa dizer que realmente
existem Planos Diretores, no entanto, não, necessariamente, regulamentados e aplicando os
instrumentos urbanos previstos (BRASIL, 2010b, p.17).
O fato da aplicação da função social da propriedade estar inserida no âmbito
municipal nos aponta a exigência de uma abordagem federativa no PMCMV. Nesse sentido e,
dado que na metodologia de provisão habitacional para o grupo de 0 a 3 salários mínimos há a

19
Cinco anos após a promulgação do Estatuto da Cidade e prazo final para a elaboração dos Planos Diretores pelos
Municípios obrigados.
20
“O Plano Diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes,
é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana” (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, art.
182, parag. 1º).
18
participação dos municípios com contrapartidas, o Programa traz um capítulo específico na sua
lei originária denominada: “da regularização fundiária de assentamentos urbanos” (capítulo III).
Neste capítulo são apresentados pontos importantes e relevantes tanto para a questão urbana
como para a adesão dos municípios ao Programa.
É definido que o Programa priorizará os municípios que adotarem a desoneração
tributária e doarem terrenos localizados em área urbana consolidada, além de utilizarem os
instrumentos do Estatuto da Cidade. Porém, como já mencionado acima, falta a regulamentação
dos Planos. Existe, atualmente, uma dificuldade por parte dos municípios (ou falta de vontade dos
governantes) para a efetiva aplicação dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade.
Na ausência da aplicação desses instrumentos previstos no Estatuto
21
, os municípios
permanecem inseridos no mercado de terras, comprando terrenos a preço de mercado, altamente
inflados, para a construção das casas populares. Atualmente, já é possível constatarmos esses
fatos, resultado do investimento em habitação sem a necessária mudança da base fundiária.
Segundo a Embraesp (Empresa Brasileira de Estudos de Patrimônio), o preço de lançamento do
metro quadrado de imóveis de dois quartos subiu 25% no primeiro trimestre de 2010 em
comparação com o primeiro trimestre de 2009, em São Paulo. Nas periferias de São Paulo, Rio de
Janeiro, Salvador, Brasília e Fortaleza, os preços de terrenos dobraram após o lançamento do
PMCMV (MARICATO, 2011)
Com isso, a tendência, novamente, é a utilização de terrenos mais baratos,
consequentemente, afastados da malha urbana. Esse fato, implica na repetição de um grande erro
cometido pelo BNH, de construções fora da cidade, edificadas nas periferias, contribuindo para a
formação de cidades fragmentadas e custosas, haja visto que será necessário a instalação de
novos equipamentos públicos nessas áreas.
Esse fato também pode ser reafirmado em 2010, um ano após o início de
implementação do Programa, quando o Ministério das Cidades lançou uma cartilha intitulada:

21
Dentre os instrumentos, podemos citar:
ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social): definem regras para o uso e ocupação do solo nas cidades e estabelecem
áreas da cidade destinada para a construção de moradia popular.
PEUC (Parcelamento, Edificação e utilização compulsórios): 1. prazo de um ano após averbação da notificação de
registro de imóveis no cartório para o proprietário apresentar projeto à Prefeitura; 2. dois anos para início das obras,
contados a partir da aprovação do projeto.
IPTU Progressivo no tempo: aumento da alíquota do imposto, a cada ano, caso os prazos do PEUC não sejam
cumpridos.
Desapropriação com Títulos da Dívida Pública: Após os cinco anos da progressividade do IPTU.
O PEUC, IPTU progressivo e desapropriação com títulos da dívida pública são utilizados de forma conjunta.
19
“Como produzir moradia bem localizada com recursos do MCMV”. Esta cartilha aborda a
importância do planejamento urbano, bem como a importância de aplicação dos instrumentos
previstos no Estatuto da Cidade. Alerta que o Programa dá preferência aos municípios que
regulamentam seus planos diretores, além de ressaltar que o sucesso do Programa está vinculado
a esse trabalho dos municípios. A cartilha também é um reflexo do conhecimento por parte da
União da deficiência dos Municípios no planejamento urbano.
Há de se considerar também a prioridade que é dada aos municípios que fazem
doação de terras. Esse fato pode resultar em competitividade entre os municípios na luta pela
conquista de mais projetos. Afinal, a moradia é de grande importância no momento das
campanhas eleitorais, ainda mais quando o âmbito municipal poderá colher parcialmente os
méritos do Programa ao realizar o cadastramento das famílias, a entrega das chaves, etc.
De acordo com Bonduki (2009), as medidas de atenção urbanística presentes no
Programa representam importantes aspectos do “pacote”. No entanto, de acordo com as
orientações previstas no PlanHab, outros instrumentos, como o “subsídio localização”, valor
adicional a ser concedido aos empreendimentos de áreas mais centrais e consolidadas, poderiam
ter sido incorporados, aproveitando o impulso dado pelo contexto que possibilitou a criação de
um Programa de tamanha dimensão (p.13).
Igualmente, autores como Rolnik (2009) e Marciato (2011), defendem a ideia que o
Programa é omisso na questão urbana, mesmo prevendo as condições mencionadas acima. Rolnik
destaca que existem outras formas de prover moradia, além da produção de novas unidades. Os
vazios urbanos permanecem intocados, assim como outras possibilidades já vislumbradas,
amplamente discutidas e apresentadas em estudos e teses concluídas no país.
Maricato, no mesmo sentido, afirma que um Programa de tamanha relevância para o
setor, que não apresenta formas de tocar no estatuto da propriedade fundiária, não regula ganhos
especulativos e nem garante a função social da propriedade, caracteriza um regresso diante da
evolução conquistada e já devidamente consolidada na legislação urbanística do país. A autora
também compara o Programa às ações do PAC, que possui parte dos seus recursos relativos à
moradia e infra-estrutura social destinados para a urbanização de favelas, o que dialoga mais com
o desenvolvimento urbano da cidade que o PMCMV (2011).
Por outro lado, o PMCMV inova ao prever isenções cartoriais, assunto quase
intocável no país. Para a faixa de mais baixa renda o registro do imóvel é gratuito. Já para os
20
outros grupos de 3 a 6 e de 6 a 10 salários mínimos há a redução do valor em 90% e 80%
respectivamente. Além disso, os prazos também são alterados, permitindo celeridade à obtenção
do registro definitivo do imóvel.
Por fim, apesar do Programa apresentar características que tocam a questão urbana do
país, as mesmas são bastante superficiais. Vincular a aplicação de recursos à existência de plano
diretor não é garantia de empreendimentos inseridos na malha urbana. Resumidamente, essa
postura adotada pela União através do Programa, não colabora verdadeiramente com a resolução
da questão fundiária do país e ainda aponta para o risco de incentivar a valorização dos terrenos
habitáveis. Paralelamente, joga luz na deficiência dos nossos municípios no que diz respeito ao
planejamento urbano.
Certamente, não podemos conceber políticas habitacionais como simples replicação
de unidades habitacionais, construção de novas unidades. É preciso construir cidades que gerem
qualidade de vida

d. Balanço da Política Nacional de Habitação do governo Lula
Essa seção se encarrega de fazer uma análise geral da Política Nacional de Habitação
do Governo Lula, evidenciando quais foram os verdadeiros avanços que o governo trouxe à tona.
O seguinte trecho extraído de Caco de Paula (2002) é, de certa forma, uma referência direta à
análise que será aqui estruturada: de continuísmos com redirecionamentos e inovações.

"Durante sua campanha pela reeleição, Fernando Henrique Cardoso chegou a
anunciar a criação do Ministério do Desenvolvimento Urbano, uma superpasta
que contaria com R$ 40 bilhões, provenientes do Orçamento da União, de
recursos da Caixa Econômica Federal e que, com acordos com a iniciativa
privada, se dedicaria a combater os grandes déficits das áreas de habitação e
saneamento. Saudado tanto por técnicos em urbanismo como por empresários do
setor imobiliário esse 'Ministério da Moradia' - ou 'Ministério da Cidade' -
passou a ser visto como uma possibilidade de, finalmente, o governo enfeixar as
políticas de desenvolvimento urbano de forma mais integrada. Como já
acontecera outras vezes, desde os tempos do regime militar, a superpasta foi
motivo de muitos comentários, discussões e disputas entre os políticos aliados
do Palácio do Planalto. Mas na hora em que teve de articular o xadrez
ministerial para o seu segundo mandato, Fernando Henrique Cardoso abandonou
a idéia. E o antigo projeto, tentado desde o fim dos governos militares, de fazer
da questão urbana a grande prioridade da ação federal, novamente, ficou para o
futuro" (p. 419 apud ABRUCIO, 2005, p.63).

21
A citação trata de uma descrição do período do governo FHC, mais especificamente
do começo do seu segundo mandato. Mostra que o governo possuía a noção de que a política
urbana (habitacional) do país estava bastante enfraquecida e, que como remédio para retomada do
assunto, estava a construção de um novo ministério – Ministério da Moradia ou Ministério da
Cidade. Iniciado o governo do presidente Lula o que temos é exatamente a concretização do
Ministério das Cidades, principal referência e base de todas as alterações que passam a surgir no
setor a partir de então.
Apesar de não podermos ligar a ideia de criação do Ministério das Cidades somente à
gestão passada do presidente FHC (haja visto que o Ministério já era uma reivindicação batalhada
pelos movimentos populares, do mesmo modo que estava presente no Projeto Moradia
22
, é
possível afirmarmos que existe uma confluência de ideias.
O Ministério das Cidades, criado em 2003, é, certamente, o ponto de partida e
principal marco de análise da Política Nacional de Habitação desenvolvida no governo Lula. O
novo Ministério passa a significar uma nova concepção do problema urbano a partir de uma
noção conjunta e integrada, ligando habitação, saneamento e transporte. Representa a retomada
da questão urbana na agenda governamental, assim como da habitação, desencadeando e
possibilitando o processo de regulamentação e reestruturação da área, como veremos a seguir.
A criação do Ministério também pode ser compreendida como a busca pela superação
da submissão da própria política aos interesses econômicos, resultado da prevalência dos bancos
públicos. Tanto o BNH como sua sucessora CEF, historicamente, subjugaram os órgãos do
Executivo responsáveis pela Política, nesses casos, as extintas SERFHAU e SEPURB(*).
O Ministério, logo de início, também tratou de considerar os movimentos populares e
suas reivindicações em suas iniciativas. Exemplos são as Conferências das Cidades, a criação de
Conselhos (Conselho das Cidades, CGFNHIS) e de Planos Nacionais com participação social,
que passam a ocorrer a partir de 2003. Esse processo de institucionalização de canais de
participação merece destaque, pela inovação e pela possibilidade de interação que se abre à
sociedade.

22
Durante o ano de 2000, o Instituto Cidadania, coordenado pelo então futuro presidente Lula, juntou-se a
especialistas, lideranças sociais e gestores públicos com a intenção de produzir um projeto que fosse capaz de
enfrentar a questão da habitação, chamado de Projeto Moradia. Este projeto era parte de uma iniciativa do Instituto
que visava à construção de projetos que associassem a questão social, o crescimento econômico e a geração de
emprego.
22
Um dos Planos criado com participação popular foi a Política Nacional Habitação,
que não representa, necessariamente, uma inovação com relação à Política antecessora. Isso
porque seus principais eixos, a urbanização de áreas precárias, a produção social de moradias e a
busca pela integração das políticas setoriais, já eram premissas do governo FHC. No entanto, o
que se percebe é uma reformulação na maneira de se operacionalizar essas premissas, ajustando o
foco em problemas ainda não atendidos de maneira satisfatória como, por exemplo, a habitação
de baixa renda.
A PNH prevê o Sistema Nacional de Habitação (SNH) que visa à reestruturação
institucional do setor a partir da organização de fundos, entes, entidades e regras de
funcionamento. No entanto, o SNH é reflexo de um legado institucional herdado do regime
militar – SFH.
Apesar das críticas, o modelo implementado pelos militares caracterizou um período
em que o país teve efetivamente uma política habitacional, com estrutura institucional própria,
articulada com agentes viabilizadores da política, fundos de recursos, entre outras características.
Tamanhas foram as marcas deixadas pelo modelo administrado pelo BNH que ainda no SNH há a
estruturação a partir de dois grandes sistemas com fontes de recursos diferentes: um voltado para
a população de baixa renda (SNHIS) e outro para a habitação provida pelo mercado (SNHM).
Essa relação feita a partir de períodos diferentes, porém com instituições continuadas,
relaciona-se com o conceito de path dependency, ou conceito de rota de dependência. Tal
conceito ilustra que o presente não é um jogo que se inicia do “ponto zero”, mas sim influenciado
pelas decisões e concretizações do passado. A estrutura montada e implementada pelos militares
ditou, de certo modo, a trajetória da política habitacional no país, constituindo-se em referência
para a área, ao mesmo tempo em que sair dela pode implicar em altos custos (GONÇALVES,
2009).
O “novo” SNHIS, é a primeira concretização que confirma a proposição de que o
governo passa a focar-se na população de baixa renda. Além do aumento expressivo de recursos
para esse grupo específico (entre eles os recursos do OGU), há a possibilidade, àqueles que
possuem até cinco salários mínimo, de entrada no sistema de mercado com o auxílio de subsídios.
Já Sistema de Habitação de Mercado, paralelamente, passa por alterações,
principalmente, de regulamentação. Mudanças em diretrizes como a Resolução nº 460/04 e nº
518/07 do Conselho Curador do FGTS (tratam de novas diretrizes de aplicação de recursos), a lei
23
10.931/04 (que assegura maior segurança econômica e jurídica ao mercado), mudanças no prazo
de financiamento de vinte para trinta anos, isenções tributárias (redução do Imposto de Produto
Industrializado – IPI – para materiais de construção) e unificação de taxas de juro da área de
habitação social, são exemplos de medidas que deram novo impulso ao sistema, além de aumento
da sua capacidade de atendimento.
No entanto, como já demonstrado, grande parte dessas novas medidas está voltada
para a construção de novas unidades pela construção civil. Esse fato toca diretamente a premissa
de regularização fundiária prevista inicialmente no PNH. Em outras palavras, significa afirmar
que sem o controle efetivo do mercado de terras e da cadeia produtiva, há de se questionar em
que medida essas ações mencionadas acima, de fato, correspondem às motivações iniciais, “já
que, ao invés de incentivar o barateamento do valor final da unidade habitacional, como se viu
no final de 2007 até meados de 2008, resultou na valorização do mercado imobiliário, em
especial, nas grandes cidades brasileiras” (MOREIRA, 2009).
A falta de maiores ações direcionadas à regularização fundiária também contradiz o
PlanHab. Este, além de apresentar várias possibilidades e estratégias de como melhor regular
tanto o mercado de terras quanto o mercado imobiliário destaca-se como um plano de longo
prazo. Nele estão previstas ações que extrapolam o período de um único governo, demonstrando
consciência da complexidade dos problemas habitacionais e urbanos que demandam ações
estruturadas no tempo para resolução efetiva.
Destaca-se também a reafirmação da necessidade de atuação conjunta dos entes da
federação no governo Lula. Diferentemente do que aconteceu com outras áreas de políticas
sociais, como educação e saúde, por exemplo, que tiveram suas competências bem delineadas, as
questões urbanas são definidas, pela Constituição Federal de 1988, como um assunto de
responsabilidade conjunta, de competência concorrente, entre os Entes da federação, que na
prática possibilita a formação de um campo de conflitos entre as esferas de governo.
Analisando essa situação, Gonçalvez (2009), afirma que a definição de competências
concorrentes não é necessariamente um problema, e sim, a ausência de mecanismos de
coordenação entre os entes:

Em algumas áreas de políticas, o papel dos entes federativos é mais claro –
como no caso da segurança pública, onde a atuação dos estados é predominante
– ou, a organização dos arranjos institucionais já avançou mais – como nos casos
24
da saúde e educação. Isso não significa dizer que é preciso existir, em vez do
compartilhamento de competências, uma separação ou divisão clara onde não
possa haver superposições, mas, sim, que mecanismos de coordenação são
fundamentais para efetivação de políticas. (p.54)

A política urbana, descrita através dos artigos 182 e 183 da Constituição, é
regulamentada pelo Estatuto da Cidade no ano 2001, resultando na importância dos municípios
para o planejamento urbano. No entanto, sabido da dificuldade de aplicação dos instrumentos
previstos pelo Estatuto da Cidade pelos municípios, o governo federal desenvolve uma linha de
ação direcionada para o incentivo à elaboração de Planos Locais de Habitação de Interesse Social
(PLHIS).
Os Planos Locais, definidos pelo próprio governo como um conjunto de objetivos,
metas, diretrizes e instrumentos de ação e intervenção para o setor habitacional, assim como a
linha de ação do governo federal de incentivo a sua elaboração, podem ser interpretados de duas
formas: primeiro como uma evidencia da dificuldade dos municípios em atuarem, de maneira
satisfatória, numa área de sua essencial competência, e, segundo, como a busca por mecanismos e
estruturas que dêem sustentação à implementação de políticas desenvolvidas conjuntamente,
exatamente como mencionado por Gonçalvez (2009).
Essa circunstância remonta exatamente a situação do PMCMV descrita anteriormente
nesse texto, onde os recursos, instruções de adesão e de implementação do Programa são dados
pela União, que se não forem aplicados adequadamente pelos estados e municípios,
impossibilitam a obtenção dos objetivos esperados.
Analisando a Política Habitacional em um âmbito geral, é possível afirmar que a
mesma pode assumir diversos formatos para prover a moradia: regular o mercado de terra,
investir em construção de moradias a partir de construtoras, de cooperativas, buscar a
regularização de assentamentos precários, viabilizar financiamentos, etc. Entretanto, é importante
notar que, apesar das várias possibilidades de provisão, a mesma não consiste na prestação de um
serviço, mas sim numa política cujo produto final é o acesso a um bem. No Brasil,
predominantemente, o acesso tem se dado a partir da construção de novas unidades habitacionais,
através do acesso à propriedade privada, que caracteriza uma política fortemente ligada aos
interesses da indústria da construção civil e de incorporadores imobiliários.
Esse fato, do predomínio do modelo de provisão de moradias ligado às construtoras
(agentes não públicos, no geral) é outra característica da Política mantida pelo governo Lula. O
25
padrão de intervenção adotado pelo governo, no que diz respeito à Política Habitacional, consiste
num tipo que podemos denominar de facilitador, ou “enabling role”, como é denominado pelas
agências internacionais de financiamento
23
. O papel de facilitador pressupõe que o Estado apenas
organize um sistema que gere as condições necessárias para a efetivação dos projetos.

“...nas últimas décadas, o papel do Estado na oferta de serviços e bens em geral,
e da habitação em particular, tem sofrido profundas alterações. Há uma
tendência clara de se reduzir a intervenção direta dos agentes públicos no
processo de provisão e de se estimular a participação de agentes não-públicos”
(WERNA, ABIKO e COELHO, 2002, p.35).

E, por sua vez, esses agentes não públicos têm buscado cada vez mais ampliar a sua
participação nesse processo. Um exemplo claro são os movimentos pela moradia e sua constante
luta pela autogestão.
Esse modelo facilitador teve sua expressão máxima durante o governo FHC, onde a
política se resumia, praticamente, a linhas de financiamento para direcionar recursos. Durante o
BNH, no entanto, podemos afirmar que existia um híbrido, pois, ao mesmo tempo em que ao
BNH competia regular e normatizar o setor, existiam as Cohab’s, agentes estaduais e ligadas ao
Banco, que por serem de capital misto tinham maior participação na provisão habitacional
(SILVA, 2009).
Apesar do PMCMV apresentar no seu modelo de implementação a participação de
municípios e estados, bem como da CEF, a elaboração do projeto, a construção, a contratação dos
funcionários, enfim, a total concretização do empreendimento, está sob a responsabilidade da
iniciativa privada. O mesmo se repete aos outros grupos com renda acima de três salários
mínimos, que subsidiados, passam a ser atendidos somente pelo mercado imobiliário.
Como consequência de um Estado facilitador, há a manutenção de políticas
focalizadas, também amplamente utilizadas pelo governo FHC, e aqui compreendidas como
políticas direcionadas a um grupo específico – os mais pobres. De uma maneira geral, o governo
Lula apresenta no seu pacote de políticas sociais um misto de políticas universais com
focalizadas, sendo as de saúde e educação os principais exemplos das universais, e as
habitacionais, entre outras, as focalizadas.

23
Com relação a literatura a cerca do “enabling role” e a sua propagação pelas agências internacionais de
financiamento, procurar a tese de John Turner, cujas ideias serviram de alicerce para as políticas de habitação do
Banco Mundial na década de 1970 (SILVA, 2009).
26
Em síntese, o balanço geral da Política Habitacional do governo Lula, permite-nos
afirmar que há uma alteração com o governo anterior, se pensarmos que a criação de um novo
ministério possibilitou um processo de reestruturação e retomada da área. No entanto, a base do
trabalho que passa a ser desenvolvido por esse novo ministério é a mesma que pautava as
concepções da Política aplicada anteriormente. A política habitacional do governo Lula, apesar
de ampliada - no sentido de permitir que mais pessoas tenham acesso a ela - permanece pautada
na iniciativa privada e destinada a aqueles que mais necessitam.

Conclusão

Inicialmente, uma das principais características presentes no PMCMV é a utilização
de recursos do OGU. Apesar de não se desvincular totalmente de outras fontes de recursos, a
utilização de grandes quantias do OGU contraria a tendência presente na lógica de habitação
construída no país de fundos com necessidade imediata de retorno. Como é demonstrado, a
utilização desses recursos, que também são aplicados na área a partir de outros programas e
métodos (como o PAC, por exemplo), significa que o governo Lula concebe que o enfrentamento
da questão habitacional precisa romper com a noção de auto-sustentação financeira, ao mesmo
tempo que em mostra intenção de fazer a política atingir aqueles que estão abaixo de três salários
mínimos. Essa análise acerca dos recursos é reforçada através da PEC da Moradia e os impactos
causados pela sua aprovação na política habitacional do país.
Relacionada à questão dos recursos também está a utilização do Fundo Garantidor
aplicado pelo Programa. Como mencionado, não foi uma inovação do governo Lula, porém nesse
momento o Fundo conta com recursos do OGU, o que lhe confere maior estabilidade e
capacidade de atuação. Esse instrumento reflete a possibilidade de inclusão da classe média baixa
no sistema de mercado e na possibilidade de acesso aos financiamentos.
Por outro lado, o PMCMV permanece focado na provisão habitacional através da
noção da casa própria, ou seja, o principal Programa habitacional do governo implementa sua
política habitacional basicamente a partir da construção de novas unidades em parceria com a
construção civil. Este modo de intervir no setor é predominante no modelo tradicionalmente
empregado pelo Estado e permaneceu quase que intocado com o PMCMV.
O aumento de recursos para política habitacional é positivo no sentido de que confere
maiores possibilidades e capacidade de intervenção na área. Porém, faz-se necessário analisar a
27
qualidade desses investimentos. A análise presente na dissertação permitiu mostrar que o
PMCMV, apesar de possuir dentre suas normas menção ao uso dos instrumentos do Estatuto das
Cidades, não regula pontos importantes de especulação imobiliária e uso da terra. Mesmo porque,
praticamente a totalidade de sua ação é pautada na ação privada do mercado imobiliário e de
construtoras. O resultado, como tudo indica, é a reprodução de empreendimentos excluídos das
cidades, a valorização dos terrenos e aumento de preços dos imóveis.
Faz-se necessário ir além do incentivo à aplicação do Estatuto das Cidades e
vinculação do Programa a existência de Planos Diretores. Diante de tamanha proposta é
primordial o Estado em suas ações tocar na questão fundiária, pois, senão, como afirma Maricato
(2011), a terra é o “nó” que persistirá minando a produção de cidades justas no Brasil.
Em resumo, o sucesso do Programa é primordial para a manutenção do uso de
recursos do OGU para a moradia, uma vez que impacta tanto a população de baixíssima renda
quanto a classe média baixa. Esse processo representa uma certa inovação e mudança de um
paradigma na produção habitacional do país, pois permite o início de uma nova trajetória para a
política habitacional, descolada da necessidade de auto-sustentação financeira. Entretanto, não há
como permanecermos concebendo política habitacional como simples construção de novas
unidades, bem como, políticas de geração de renda e trabalho. Utilizar a construção civil como
remédio para a crise econômica internacional é, certamente, válido, ainda mais se tratando de
uma situação emergencial. No entanto, o que não pode é ocorrer a sobreposição dos objetivos
econômicos aos habitacionais. É preciso pensar nas cidades que o Programa está viabilizando,
assim como a qualidade de vida que essas pessoas terão. Lembrando que, como amplamente
previsto, tanto no PlanHab e em trabalhos acadêmicos, existem outras formas de prover
habitação.
A presente análise conclui que o PMCMV inova com relação às questões ligadas ao
financiamento e a instrumentalização dos recursos. A consequência é o rompimento com algumas
lógicas de produção habitacional do país, vislumbrando uma nova trajetória nesse sentido. Porém,
deixa a desejar em assuntos já bastante discutidos no país, como o planejamento urbano e a
regularização fundiária.



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Referências

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