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Diego Sousa De Carvalho - Trans-políticas Em Trans-contextos - Transexualidade, Clínica E Identidades

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TRANS-POLÍTICAS EM TRANS-CONTEXTOS –

TRANSEXUALIDADE, CLÍNICA E IDENTIDADES
TRANS-POLITICS IN TRANSCONTEXTS - TRANSSEXUALITY, CLINIC AND IDENTITIES
Diego Sousa de Carvalho2
RESUMO: O objetivo deste artigo é verificar os contextos
em que a questão da transexualidade surge nas agendas políticas públicas federal, dos Estado e município de São Paulo, produzindo e
sendo produzida por discursos institucionais e clínicos, articulados
ao mesmo tempo aos saberes e tecnologias médicas internacionais.
A genealogia da transexualidade está diretamente ligada à uma instituição clínica. Sua instituição como categoria nosológica reflete
diretamente na implantação de novos aspectos subjetivos no campo
do gênero, alguns em oposição outros em adesão aos dispositivos
nosográficos. Este trabalho foi composto por meio de levantamento
bibliográfico referente às políticas públicas brasileiras de atenção à
transexualidade, e pela coleta de depoimentos junto a profissionais e
pacientes do processo transexualizador em São Paulo, e tenta acompanhar como se deu parte desse processo no âmbito local. Cabe propor às ciências médicas a reflexão sobre o tema da transexualidade
de uma perspectiva mais ampla, que considere os aspectos sociais da
saúde humana, bem como o direito à diversidade de expressões de
gênero e sexualidade. De modo que a permanência da patologização
às identidades trans hoje deve ser questionada.
Palavras-chave: Transexualidade; políticas públicas; Sistema Único de Saúde; patologização; sexualidade.

1
Mestre em Saúde Pública e Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da
Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected]

65| Século XXI, Revista de Ciências Sociais, v.4, no 2, p.65-90, jul./dez. 2014

ISSN: 2236-6725

Trans-políticas em trans-contextos – transexualidade, clínica e identidades

ABSTRACT: This text aims to verify the different contexts
in which the transsexuality appears in the federal, and São Paulo’s
state and city public policies agenda, producing and been produced
by institutional and clinical discourses, by the same time articulated
by international medical knowledge and technologies. The genealogy of transsexuality is directly tied to a clinical institution. Its institution as a nosological category reflects directly on the implantation
of new subjective aspects in the gender field, some that oppose as
some adhere to the nosographic devices. This work has been written
through bibliographic revision over the public policies about health
care to transsexuality in Brazil, and collecting narratives from professionals and patients of the transsexuality process in São Paulo,
trying to follow part of this process locally. It should propose to
medical sciences a reflection about the transsexuality from a wider
perspective, considering social aspects of human health, as the right
of diversity and free sexual and gender expressions, so that keeping
pathologizing trans identities should be questionable today.
Keywords: Transexuality; public policies; Brazil’s Health
Care System; pathologizing; sexuality.
1 INTRODUÇÃO
Apesar de ser dito que o primeiro procedimento cirúrgico
transexualizador que se tem conhecimento no Brasil acontecera no
Hospital das Clínicas na década de 1970, a transexualidade passa a
ser reconhecida enquanto demanda pública quase trinta anos após
este ocorrido, através da Resolução CFM 1482/1997. Este longo tempo de resposta nos faz perguntar como se davam as negociações entre os sujeitos e sujeitas demandantes de atendimento e o sistema de
saúde público, a quem recorriam e de que modo encaminhavam suas
necessidades? Sob quais aspectos se compreendiam suas reivindicações e passando por quais agentes, instituições e discursos? Compreendendo as dinâmicas políticas por que passaram os município e
Estado de São Paulo, e mesmo o Brasil, de que modo isto reflete no
sistema de atenção estruturado hoje?
66| Século XXI, Revista de Ciências Sociais, v.4, no 2, p.65-90, jul./dez. 2014

ISSN: 2236-6725

pondo em evidência as dinâmicas desse “fluxo”. Revista de Ciências Sociais. morais. não tendo. instituições. institucionalizada nos anos 80. pensando uma estruturação sistêmica de atenção à população trans em São Paulo. gerir e dar lugar às sexualidades. decisões regulamentares. os fluxos e emaranhados “gente-doença-política”. Os estudos da biomedicina e da sexologia clínica do século XX vão fundar uma categoria biomédica que Berenice Bento (2006) denomina de “dispositivo transexual”. conforme a estrutura atual dos serviços. leis. portanto. de dispositivo de poder. no 2. Os dispositivos do poder seriam formas invisíveis por meio das quais o poder se atualiza e se manifesta. v. de modo a perceber como. na década de 1970. a intenção de descrever uma “história da clínica”. procurei entre meus informantes agentes que vivenciaram épocas distintas da transexualidade. jul. eventualidades relevantes pelas quais teriam decorrido processos judiciais ao médico responsável pelas cirurgias transexualizadoras de então. enunciados científicos.244). desde as primeiras pesquisas sobre o tema. p. não havia Sistema Único de Saúde e o Brasil vivia o auge do regime militar. Este trabalho procurará investigar de que modo(s) foi fundada uma clínica da transexualidade a níveis federal e no município e estado de São Paulo.Diego Souza de Carvalho Lembrando que na década de 1970. o que implica no confrontamento de diferentes jogos de verdades. medidas administrativas. o dispositivo de transexualidade requer o poder médico de definir. 67| Século XXI. até os dias de hoje. Tendo em vista relacionar as formas de subjetividades que emanam de e para as formas de governabilidade. de uma noção de movimento. Partindo. porém.4. este trabalho pretende descrever “fluxos”. No caso. p. à maneira proposta por Biehl (2011).65-90. as relações médico-clínica e médico-paciente não aconteceriam fora de uma verticalização discursiva. sob o DSM-III. proposições filosóficas. Dispositivo aqui é utilizado num sentido foucaultiano./dez. um “conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos. Acompanharam-me no desenrolar da pesquisa o foco sobre as estratégias e agenciamentos feitos pelas pessoas transexuais junto aos técnicos da clínica para o acesso aos serviços de saúde. 1979. 2014 ISSN: 2236-6725 . organizações arquitetônicas. filantrópicas” (Foucault.

porém. Devido ao número baixo de A Portaria 1707 GM/MS.Trans-políticas em trans-contextos – transexualidade. Revista de Ciências Sociais. Opto por preservar a identidade da maior parte dos entrevistados. Duas das portas de entrada para a Política nacional do Processo Transexualizador2 se dão por meio do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC / FMUSP). teve início grande mobilização internacional de ativistas e intelectuais pela despatologização das identidades trans e sua retirada do manual. atendimento psicoterapêutico e fonoaudiológico. atualmente o Estado conta com três equipamentos oficiais. p. As cirurgias são feitas no Hospital das Clínicas pela equipe de endocrinologia. o dianóstico foi mantido. v. de 18 de agosto de 2008 institui a nível nacional a estratégia para o Processo Transexualizador. e pelo AMTIGOS (Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual). e somente após este período. inaugurado em 1993. este dispõe de equipe médica de clínica geral. tendo recebido também laudo médico psiquiátrico confirmando o diagnóstico de transtorno de identidade de gênero ou disforia de gênero (conforme nomenclatura atual no DSM V3). 2014 ISSN: 2236-6725 . além de serviço social. e serviço social. para discussão e encaminhamento dos casos clínicos. jul. fundado em 2010.4. procurei conversar com profissionais e pacientes ligados à implantação da clínica de transexualidade no Estado e no município. que orienta as práticas médicas psiquiátricas. De acordo com legislação federal do Processo Transexualizador. 2 68| Século XXI. dispõem de equipe de atendimento psiquiátrico e psicoterapêutico. clínica e identidades “emaranhado”. manual clínico publicado nos Estados Unidos pela Associação Americana de Psiquiatria (APA). conforme previsto no código de ética da ABA. Para a realização dessa investigação. a ser referenciado no SUS em serviços de atenção especializada. ambos ligados ao Instituto de Psiquiatria. foi publicada a quinta edição do DiagnosticandStatistical Manual of Mental Disorders (DSM). Ainda no ano de 2010. endocrinologista e proctologista. Desde 2012. através dos Programas PróSex (Projeto Sexualidade). após reunião mensal de equipes dos três serviços./dez. São realizadas doze cirurgias ao ano. as pacientes devem participar durante dois anos de psicoterapia.65-90. ligado à Secretaria Estadual de Saúde. no 2. serão encaminhadas para procedimentos cirúrgicos de redesignação sexual. A saber. mudando sua nomenclatura de “transtorno de identidade de gênero” para “disforia de gênero”. iniciaramse as atividades do Ambulatório de Atenção Integral a Travestis e Transexuais no Centro de Referência e Tratamento (CRT). mesmo sob pressão. 3 No ano de 2013.

junto a uma equipe médica vinculada ao Hospital das Clínicas da USP. as pesquisas de John Money. as primeiras cirurgias de transgenitalização ocorreram na década de 1920 na Alemanha e Dinamarca em pacientes “pseudo-hermafroditas” (p. este autor teria publicado o artigo “TransvestismandTransexualism”. Cauldwell teria sido o primeiro médico sexólogo a propor a noção de psicopatia transexual em 1949. tendo publicado um estudo de caso sobre um transexual masculino (Saadeh. 2014 ISSN: 2236-6725 . no 2. e utilizada por John Money e Robert Stoller. provavelmente. esboçado “algumas características que viriam a ser consideradas exclusivas dos/das transexuais” (p. as mais promissoras à época para o desenvolvimento da compreensão da transexualidade. no qual se estabeleceriam limites e marcadores verificáveis. Posteriores a este trabalho. 40) na compreensão clínica. contextos Nos anos 1970.Diego Souza de Carvalho cirurgias novas. as pesquisas de Harry Benjamin. a transexualidade aparecerá como um fenômeno prolífero de pesquisas. importantes referências em estudos clínicos neste campo. embora houvesse sido utilizado anteriormente. conforme nos relata Bento. as pacientes devem aguardar numa longa lista de espera. 2 Transexualidade – Conceito(s). Em 1953. diferenciadores entre as pessoas travestis. Conforme destaca Saadeh (2004): 69| Século XXI. porém. 41). A distinção entre sexo e gênero seria mais tarde incorporada à compreensão médica da transexualidade. passados os dois anos de psicoterapia. em 1955./dez. 2006. onde o conceito de “gênero” surgiria com certa relevância na constituição identitária do indivíduo. sua pesquisa sobre a transexualidade. 2006) e. 2004 e Bento. na chamada “identidade sexual” (Bento.65-90. v. p. sob o olhar da clínica. jul. especialmente entre as décadas de 1950 a 1970. conforme nos dirá Bento (2006). O conceito de transexualidade que hoje utilizamos remonta entre as décadas de 1950 a 1960.4. especialmente no que se refere aos Estados Unidos. o cirurgião Roberto Farina iniciava. p. transexuais e homossexuais. No cenário internacional da biomedicina. 52). estariam. Revista de Ciências Sociais. sendo considerado o fundador do termo. Conforme nos relata Arán (2006). Serão.

que revogava a anterior. jul. a obrigatoriedade de composição de uma equipe regulamentada para atendimento no interior da instituição hospitalar. MtF na nomenclatura internacional. no 2. além da exigência do consentimento livre... 5 FtM é a nomenclatura internacional. clínica e identidades Após Benjamin. autorizador e regulador do procedimento em seu local de realização. 2014 ISSN: 2236-6725 . Depois desta. assim como as presentes dificuldades técnicas dos procedimentos neofaloplásticos (produções transgenitais estético-cirúrgicas de órgãos sexuais masculinos. indicadas para pacientes transexuais FtM5). assim como de um Comitê de Ética. comunicando o bom resultado obtido nos procedimentos de neocolpovulvoplastias (produções transgenitais estético-cirúrgicas de órgãos sexuais femininos. indicadas para pacientes transexuais MtF4). prática implantada desde 1996 em pesquisas no campo da saúde humana. “de masculino para feminino”. demarcando especificamente que somente hospitais universitários e instituições de pesquisa poderiam realizar tais procedimentos. v. 37) (./dez. adotada por profissionais de saúde e designa o paciente que vai submeter-se à mudança corporal cirúrgica. que atualmente ainda é o maior instrumento legal que perpassa o tratamento hospitalar da transexualidade. em 2002. a Resolução 1482/1997 vigorou durante cinco anos. Este regulamento foi implantado em caráter experimental.4. 4 70| Século XXI. a medicina dos Estados Unidos iniciou um processo de incorporação desse novo diagnóstico e o tratamento proposto pelo autor (p.65-90. “de feminino para masculino”. foi promulgada a Resolução 1652/2002. esta resolução incluía. adotada por profissionais de saúde e designa o paciente que vai submeter-se à mudança corporal cirúrgica. 3 Legislação Federal Em 1997. a fins de pesquisa. 39). dispondo a autoridade médica de intervir sobre os procedimentos transexualizadores em pacientes diagnosticados sob este transtorno. p. Money foi o responsável por várias cirurgias de redesignação sexual realizadas com transexuais nas décadas de 60 e 70 (p. foi a primeira vez que o Conselho Federal de Medicina autorizou a demanda de intervenção sobre a transexualidade.Trans-políticas em trans-contextos – transexualidade.) Fundador da Clínica de Identidade de Gênero do John Hopkins Hospital. até ser substituída pela Resolução 1955/2010. Revista de Ciências Sociais. além disto. Esta medida durou oito anos.

se submeterão a um processo de readequação. da “doença” nesses textos técnicos. reinserção social através de cortes cirúrgicos. v. A legislação federal sobre a transexualidade deixa ainda grandes lacunas sobre o assunto em seus protocolos e políticas públicas centrais. no 2. Assim também. que as antecede em seis anos na posição de único objeto oficial regulador das práticas específicas do sistema de Saúde. Percebemos que para o código médico cabe a patologização como meio de acesso ao tratamento. a despeito do caráter “experimental” que se mantém no caso dos transexuais masculinos. estabelecendo tratamento e ofertando a possibilidade de “correção” cirúrgica. doentes e desviantes. o papel do profissional médico é fundamental para que se confira uma linha terapêutica. jul. em determinado momento. a 71| Século XXI.4.Diego Souza de Carvalho Entre o espaço de tempo que separa esse conjunto legal. Revista de Ciências Sociais. No entanto. Resguardam ainda a importância da Resolução 1652 do CRM. Reforçamos também o grande lapso de tempo que duraram estas Resoluções como único instrumento legal acerca da saúde da população transexual. procedimentos invasivos e fármacos que as integrarão novamente no circuito de um gênero ideal e de uma reorientação identitária à heterossexualidade. preconiza entre seus objetivos “promover o aperfeiçoamento e a qualificação das tecnologias usadas no processo transexualizador com vistas ao atendimento universal”. 2014 ISSN: 2236-6725 . por meio da Resolução 2836/GM do Ministério da Saúde. Consideramos os benefícios que estas políticas reguladoras garantiram às vidas de muitas pessoas. É a noção de “desvio psicológico” que guiará o processo terapêutico. com exceção obviamente da maior institucionalização das clínicas. Estas pessoas. logo. haja vista o crescente número de pacientes atendidos ao longo dos anos. e promulgada em dezembro de 2011./dez.65-90. p. também não podemos deixar de notar a centralidade do papel do “diagnóstico”. determinando diagnóstico. e reconhece. verificamos poucas alterações textuais. e da bem sucedida consolidação dos procedimentos que acompanham as transexuais femininas. Editada em 2010. a Política Nacional de Saúde Integral da População LGBT (2010) procura ser bem genérica em suas referências à transexualidade.

segundo nos relata Lionço (2009): O Comitê realizou. 2009. ambas de 2008. que. regulados pelo Departamento de Atenção Especializada (procedimentos de alto custo e “Alta 72| Século XXI. A Portaria 1707/GM foi responsável por instituir no ambito do SUS o “Processo Transexualizador”./dez. no 2. no que refere às questões de gênero e sexualidade humana. quanto a este assunto. clínica e identidades limitação de conhecimento e prática atual dos serviços de saúde. Revista de Ciências Sociais.Trans-políticas em trans-contextos – transexualidade. 2009. compondo instrumentalmente o que mais se aproxima de um protocolo do atendimento a pessoas transexuais. 44). parcialmente tendo resultado destes processos. marco da incorporação dessa terminologia na discussão sobre saúde de transexuais. mas daquelas ações necessárias à garantia do direito à saúde circunscritas à passagem para a vivência social no gênero em desacordo com o sexo de nascimento”. ao passo que a Portaria 457/SAS. em fevereiro de 2006. reforçando que o caráter destas políticas não é de assistência integral. ao mesmo tempo que define os valores e critérios das clínicas para a realização dos procedimentos na categoria. Não se trata. jul. são. p. “atualmente é conhecido que os problemas de saúde destas pessoas são bem mais complexos e suas demandas são numerosas”.65-90. “O Processo Transexualizador compreende um conjunto de estratégias de atenção à saúde implicadas no processo de transformação dos caracteres sexuais pelos quais passam indivíduos transexuais em determinado momento de suas vidas. as Portarias 457/SAS e 1. Entretanto. portanto. (Lionço. que até então estivera restrita à lógica do custeio dos procedimentos médico-cirúrgicos implicados na transgenitalização. SUS. reforçando que. reunião denominada Processo Transexualizador no SUS. v.707/MS/GM. p. (Lionço. do estabelecimento de diretrizes para a atenção integral no sentido estrito. 2014 ISSN: 2236-6725 .4.51) Dessa forma. esta Política resulta das diversas reuniões do Comitê Técnico de Saúde da População LGBT. marco para o Sistema Único de Saúde. aquilo que Lionço chama de “Processo Transexualizador”.

a Portaria 1707. femaleto male).Diego Souza de Carvalho Complexidade”). Lionço ainda chama nossa atenção ao fato de muitos ganhos para esta população terem partido de certa “judicialização da demanda”. traz também uma série de Anexos que demonstram preocupações complexas com relação à pessoa transexual. João Nery teria sido o primeiro homem trans7 a passar por um procedimento cirúrgico FtM no Brasil. no entanto. Farina. ou transexuais femininas as pacientes MtF (male tofemale). jul. 4 Antes de haver o SUS.E.6 Me disse o escritor João Nery. Revista de Ciências Sociais.°. entre os departamentos cirúrgicos e psiquiátricos. no 2. mesmo após feita a “redesignação”. apresentando de modo objetivo o processo de saúde numa dinâmica que articula os conhecimentos biomédicos e aspectos sociais e psicossociais da vida. para indicar “registro de entrevista”. 7 Utilizarei a nomenclatura mais comum aos movimentos sociais que chamam de homem trans. a legislação pública fala de humanização da atenção e educação permanente para o atendimento da população trans. antes de haver transexualidade “Não havia SUS. A transexualidade.4. Esta sua frase me parece indicativo das circunstâncias em que se instituiu a clínica de transexualidade como a temos hoje. portanto. fenômeno da clínica ocidental contemporânea. não restringindo nem centralizando a meta terapêutica no procedimento cirúrgico de transgenitalização e de demais intervenções somáticas aparentes ou inaparentes”. muitos médicos ainda preferem se reportar ao sexo de registro dos indivíduos para classificá-los e defini-los. via E-mail e Facebook. Cabe reforçar que não é consenso na clínica esta terminologia. mais que isso. e mulheres trans. conhecidopela publicação de sua auto-biografia./dez. 2014 ISSN: 2236-6725 . ou transexuais masculinos os pacientes FtM (abreviatura do ingês. na qual relata seu atendimento pela equipe de pesquisa do Dr. de pressão por parte do Ministério Público para que o Ministério da Saúde se posicione com relação ao grande número de reivindicações jurídicas por acesso aos serviços. não sou o primeiro”.65-90. em rápida entrevista concedida online. Ativista pelas identidades trans. Pela primeira vez. nos anos 1970. Utilizarei doravante a sigla R. é como vimos Registro de Entrevista realizada com o psicólogo e escritor João Nery. isto é. v. 6 73| Século XXI. em 16 de abril de 2013. Estas conquistas são indiscutivelmente importantes. em seu Artigo 2. p. pede “a integralidade da atenção.

1979 E Saadeh. O caso é relatado pelo jurista Heleno Fragoso em artigo publicado pela Revista de Direito Penal. Esta teria silenciosamente surgido como opção diagnóstica aos países sob influência cultural dos Estados Unidos. sim. é importante perceber o contexto político específico que vivia o país à época dessas discussões. 2014 ISSN: 2236-6725 . “A própria palavra transexual era praticamente desconhecida nos meios acadêmicos.4. Valdirene. tempos depois de feita a cirurgia. sendo o Brasil um destes. o que também lhe foi negado.Trans-políticas em trans-contextos – transexualidade. Valdirene. de que a cirurgia é o procedimento indicado nos casos diagnosticados pela transexualidade. pois. de uns amigos do Farina. Perguntei a João se ele achava que o contexto da Ditadura brasileira dificultava mais as vivências trans. clínica e identidades produto da clínica norte-americana./dez. Ao contrário dos Estados Unidos. e em clínicas particulares de parceiros seus. Revista de Ciências Sociais. Ele me responde que a Ditadura dificultava. pela intervenção cirúrgica sobre a paciente “MtF” (transexual que busca a transição para o corpo feminino) Sra. o Brasil vivenciou um regime político totalitário entre 1964 a 1985. e por isto estaria enfrentando diversas complicações legais por meio de processos movidos pelo CRM questionando sua conduta (Fragoso. no ano de 1971. mas ao mesmo tempo percebe que a discussão sobre transexualidade era bem rasa.). o caso teria iniciado quando a Sra. procurara a justiça para obter a devida mudança em sua documentação civil. jul. os conselhos éticos do Brasil ofereceram forte resistência ao entendimento clínico que se tem hoje. sociais e políticos da época”. apesar de haver grandes discussões no cenário internacional acerca desta estratégia terapêutica. O médico Roberto Farina fora responsável. v.À época a intervenção no corpo da pessoa transexual era considerada “mutilação”. A princípio. Por mais que as pesquisas de Roberto Farina avançassem com sua equipe no Hospital das Clínicas.E. (R. p. 2004). assim como as demais manifestações da diversidade sexual. Todavia. Minha cirurgia foi realizada numa clínica particular em Sampa. “piorava as coisas”. camufladamente. no 2. não havia ainda uma discussão pública sobre o as74| Século XXI.65-90. edição de 1979.

sem nome específico e invisíveis./dez. estas procurariam outros caminhos. tendo o caso de Roberta Close ganhado notoriedade na mídia. Pelas técnicas de maquiagem. 5 Geração Roberta Close Em 1984.4.. p. práticas desviantes. Roberta teve que se submeter ao constrangimento de portar documentos que negavam sua existência social. estas procurariam outros caminhos. nesse sentido. entrevistou Simone. 2014 ISSN: 2236-6725 . Conforme reforça Bento.549). podemos observar que se descreve a mesma sensação da frase de João Nery. sentidos e soluções.65-90. Simone faz apontamentos das categorias identitárias numa noção temporal. E dirá: 75| Século XXI.. Foi um pioneirismo do Farina” (R. v.E. no 2. sentidos e soluções. jul.). Eram as margens da heterossexualidade ocidental. À falta de regulamentação política que desse nome às pessoas. Revista de Ciências Sociais. e tinha-se como ideal de beleza aquela que era “perfeita sem nada”. À falta de regulamentação política que desse nome às pessoas. a sociedade começou a se deparar com as confusões de gênero em escala midiática (... 2011. (Bento.) Por muito tempo Roberta Close reivindicou sua identidade de gênero.) Por muitos anos. travestis e homossexuais. “não ser o primeiro” (operado pelo SUS). Afirmava que era uma mulher transexual e precisava mudar seu nome e sexo nos seus documentos (. p. Pela primeira vez na história do país. excluía-se da categoria de “bichas caricatas”. ao pesquisar o passado de sua irmã Gabriela pra compor a peça teatral Luís-Antonio Gabriela. equivale a não existir nos procedimentos reconhecidos pelo Estado e ter de recorrer à ilegalidade. uma revista exibiu a manchete: “A mulher mais bonita do Brasil é um homem”. Em seu relato. Sua fala demonstra que os sujeitos e as sujeitas da transexualidade não “existiam” antes do SUS. “Não havia legislação para esse tipo de cirurgia. uma travesti que viveu com sua irmã em Santos. Baskerville (2012).Diego Souza de Carvalho sunto. Na linguagem corrente não haveria distinção nítida entre as vivências transexuais. a inexistência social das pessoas trans é uma constante nos relatos que remetem às décadas de 1970 e 1980.

seja um sentido que tem acompanhado as experiências de transexualidade e travestilidade brasileiras há mais tempo. que implicam deixar o país para obter as realizações corporais e profissionais desejadas. Se o Brasil não dava espaço para discussões sobre práticas sexuais mais livres. Simone também descreve esta impressão já na “geração Roberta Close”: E as bichas que iam pra lá eram só as poderosas. a Europa enseja o coroamento de uma vida vivida em fronteiras e ultrapassagens (Vale. Embora este assunto não seja objeto deste trabalho. Este será o caminho procurado por Gabriela. Revista de Ciências Sociais. mas também. indicava os países de “primeiro mundo” como possíveis soluções de projetos de vida. e apesar de as entrevistadas de Vale situarem-se num contexto bem mais recente. 2012. ter uma boca horrorosa. Como ela. p. clínica e identidades E a gente era daquela geração Roberta Close. p. não somente enquadrar-se no padrão de beleza dita “feminina” mesmo sem maquiagem. 2014 ISSN: 2236-6725 . então ela era nossa musa. “Ser aquele viado” indica. 2005./dez. eu quero ser aquele viado”.61). Roberta Close era perfeita sem nada. no 2.acredito que essas “ultrapassagens” de barreiras e fronteiras.Trans-políticas em trans-contextos – transexualidade. a partir daquilo que denominam de “processo de feminilidade”. é provável que uma geração de transexuais tenha buscado esse recurso. p. A gente não se maquiava muito pra não ficar caricata (Baskerville. para além de uma dada tradição heterossexual binária. ser feia. As que não tinham ido ainda eram viadinhos. “Ai. como relatará o autor. 2012. v. Interessa neste ponto a observação feita por Vale (2012) em sua pesquisa com travestis e transexuais que migram para a Europa por meio de redes de prostituição: Se ultrapassar limites constitui o ethos mesmo da experiência travesti e transgênero. podia ser um dragão. 76| Século XXI. . possuir condições financeiras de viajar e realizar a cirurgia ou as mudanças corporais desejadas no exterior.20). Pra ser maravilhosa.64). jul.65-90. p. era estrela (Baskerville. mas se tivesse ido pra Paris.4.

p. vão aparecer demandas específicas trazidas. A transexualidade passa a ser reconhecida enquanto demanda pública quase trinta anos após este ocorrido./dez. considerara a intervenção desnecessária. sendo negada em ambos. este projeto teria sido aprovado pelo Congresso. jul. como veremos. v. e vetado porém pelo presidente João Figueiredo (Inácio. expondo a público opçõesidentitárias que confrontavam a heteronormatividade.8 Até então.65-90. no entanto. a ausência de políticas específicas a nível federal me parece representar uma estratégia de gestão onde não-políticas equivalem a políticas de invisibilidade e apagamento social. estas “pessoas públicas” surgem como pessoas que buscaram no “exterior”.4. 1998). e finalmente pela transexual Roberta Close. a transexualidade se oficializa na nosografia médica ocidental. renegar os sujeitos e silenciá-los parecia medida mais eficaz. especificando e destinando verba para a realização 8 9 Parecer CFM n.° 39 de abril de 1997 Idem 77| Século XXI. Todavia. o que acaba por impor diversas limitações de acesso da população alvo aos procedimentos. em outros países. Consta que a questão tenha sido discutida pelo CFM em dois momentos. no 2. as medidas políticas implantadas tendem a acompanhar em seus textos um caráter de “experimentalismo”. antes de sua regulamentação em 1997. podendo o/a profissional incorrer em crime de grave mutilação de órgãos e ofensa à integridade. através daResolução CFM 1482/1997. Finalmente. ou seja.Diego Souza de Carvalho Por meio da mídia. em 1979 o deputado José de Castro Coimbra apresentara ao Congresso projeto de lei tendo em vista regulamentar juridicamente a mudança documental da população transexual. Nos anos 1980. Todavia. Conforme relata a psicóloga do HC Marlene Inácio. 2014 ISSN: 2236-6725 . Revista de Ciências Sociais. além de resultarem em “atos médicos desnecessários”. os recursos para realizarem seus desígnios. (1998). o Conselho entendia preservar seus profissionais. A transexualidade desde esta época é um campo de tensão entre os poderes médicos e jurídicos. inicialmente pela transformista Rogéria. proibidos pela legislação do País9. com a publicação do DSM-IV. Mais importante que perseguir ou reprimir. 1975 e 1991. o SUS se posicionará autorizando.

com fundamento técnico e adequação legal “. promulgada em 1988.4. do qual extraí estas citações. entenda-se a comunidade médica norte-americana. importante instrumento democrático que passará a regular a estruturação dos serviços. mais que isso. o Brasil já vivia sob outra Constituição. autorizando a cirurgia”. 2014 ISSN: 2236-6725 . jul. “artigos sobre cirurgia de transexualismo publicados na imprensa leiga”./dez. p. ressalvar o “embasamento legal a ser apreciado a posteriori e a compreensão de que o procedimento proposto constituía uma forma especial de tratamento médico. o Conselho de Medicina quer demonstrar como o Brasil apresentava atraso para atender demandas das comunidades médicas ocidentais. Reportando-se a sociedades orientais de tradições ditas mais “conservadoras”. v.º 39 de 2007. pondo fim ao regime ditatorial. Em 1997. responsável pela publicação do DSM. É importante também destacar que a chamada “imprensa leiga” aparece como um terceiro eixo a medir forças e colocar-se entre os campos médicos e jurídicos neste assunto.65-90. haja vista uma preocupação do Conselho com um aumento de publicações midiáticas acerca da transexualidade. Revista de Ciências Sociais. O Parecer CFM n. a chamada Constituição democrática. “há comunicados e trabalhos em culturas tradicionais como a chinesa e muçulmana (decretos religiosos ‘ fatwa’). na figura da Associação Americana de Psiquiatria.Trans-políticas em trans-contextos – transexualidade. As discussões públicas sobre a transexualidade e suas especificidades pareciam ganhar proporções que exigiam posições estratégicas a fim de regular o assunto sob as vias médicas e legais. pois revela importantes questões sobre o entendimento clínico à época e sobre os agenciamentos e não consensos anteriores entre as práticas médicas e os regimes do Estado. 78| Século XXI. Ocorre que havia certa urgência em se retomarem tais discussões. era preciso resguardar os profissionais que viessem a executar esses procedimentos. O CFM reconhecia que à época muitos países já possuíam maior diálogo acerca dessas questões. clínica e identidades dos procedimentos dez anos mais tarde por meio das Portarias GM/ MS 1707/2008 e SAS/MS 457/2008. A Constituição de 1988 também cria o Sistema Único de Saúde. no 2. é um interessante documento a se estudar.

Em conjunto com a Endocrinologia. por exemplo. dificuldades em se marcar cirurgia. A publicação desta resolução do CFM marca importante conquista para as pacientes. p. manejo terapêutico. que transcende e ultrapassa qualquer vínculo ou necessidade reprodutiva. Os argumentos que se utilizam aqui. que conta com a adesão dos pacientes. a realidade mudou e o afluxo de pacientes aumentou (Saadeh. “isto é. procuram ainda que de forma elementar conferir “humanidade” aos direitos sexuais. questões éticas. Revista de Ciências Sociais. quase sempre tomando como fundamento Harry Benjamin. no 2. jul. etc.4. sob circunstâncias determinadas. esta publicação oficial parece também atender reivindicações e interesses das equipes médicas.65-90. ProSex. discutindo critérios diagnósticos. além disto. 2014 ISSN: 2236-6725 . o HC presta atendimentos a transexuais. porém a princípio a equipe podia oferecer “poucos recursos” médicos. As questões de gênero se associam à condição de humanidade (e de direito político) do paciente. a prevalência do homem como animal político acima do homem reprodutor” (Parecer CFM n. em 1993. 04).04) (. “humano”. p. que agora tinham a possibilidade de receber assistência cirúrgica e endocrinológica. desde 1999.../dez. sob a perspectiva de que a sexualidade trata-se de um fenômeno social. o ProSex integra uma equipe multidisciplinas e coesa. que em diversos hospitais universitários já prestavam atendimento 79| Século XXI. Conforme Saadeh (2004). autorizando a cirurgia de redesignação sexual em hospitais-escola ou ligados à pesquisa e. ao mesmo tempo em que estão marcadas em diagnósticos sobre seus corpos.° 39 de abril de 1997). psicoterapia e questões práticas do dia-a-dia como. v.Diego Souza de Carvalho Outro ponto apresentado nestadiscussão é a possível abertura na concepção da sexualidade para esses profissionais da saúde. desde a inauguração do Programa de Sexualidade. O debate sobre a transexualidade no campo da saúde resulta de um constante paralelo entre os aspectos jurídicos e os aspectos sociais.) Mas foi com a resolução do CFM de 1997 que um trabalho efetivo. Com a publicação da normatização do CFM. 2004. vem funcionando. sendo o objetivo do tratamento a psicoterapia (p.

o artigo do médico Drauzio Varella. é provável que recebesse pressão da 10 Em abril de 2009. p. 6 A clínica de transexualidade em São Paulo – rupturas e consolidações a partir do ano de 2010 Em abril de 2009.2013. clínica e identidades à essa população e agora poderiam dialogar com comunidades técnicocientíficas internacionais em suas propostas de intervenção terapêutica. entitulado “Homens que são mulheres” teria sido publicado pelo jornal Folha de S. e às transexuais especificamente. 11 Registro de entrevista realizada em janeiro de 2013. médico de influente participação nas mídias.4. Drauzio Varella 10havia apresentado na mídia um artigo falando sobre a necessidade de atenção às populações vulneráveis. 80| Século XXI. v. A inauguração foi em 09 de junho de 2009 na Semana da Parada Gay (R.com. Maria Clara (Maria Clara Gianna. surgia o Ambulatório de Atenção Integral a Travestis e Transexuais./dez. o artigo ainda pode ser visualizado no site do autor. Coordenadora do Programa Estadual de Prevenção a DSTs / Aids) aceitou o desafio e propôs o atendimento no CRT. jul.11 O então secretário estadual parece ter apresentado esta demanda num momento bastante oportuno. na Parada do Orgulho LGBTT.Trans-políticas em trans-contextos – transexualidade. Na mesma época o Dr. especialmente televisivas. a autora ressalta que muito além da transmissão de informação ou da tradução de descobertas científicas para um público supostamente leigo. “o que se faz é ajudar efetivamente a construir novas realidades sociais” (p.E. Rohden (2011) destaca a importância do papel da mídia nas tarefas em que se ocuparia de divulgação científica. Drauzio Varella. e atendendo a uma demanda pública exposta pelas mídias. Ex-Secretário Estadual de Saúde) reuniu os coordenadores e apresentou a demanda de assistência ambulatorial para a população de travestis. o Barradas (Luiz Roberto Barradas Barata. Paulo. Drauzio. 190). 2014 ISSN: 2236-6725 . no 2.br/sexualidade/homens-que-sao-mulheresConsultado em 22. articulando-se com a visibilidade produzida pelos movimentos sociais LGBTT. Ainda que o Secretário tivesse se omitido ao artigo do Dr. Revista de Ciências Sociais.). A Dra.04. pelo link http://drauziovarella. É interessante o fato de o Secretário Estadual convocar a reunião em que apresentaria esta demanda após a divulgação do artigo do Dr.65-90.

Neste mesmo mês. “Hospital das Clínicas de SP faz uma cirurgia por semana”12. <http://www. 12 81| Século XXI. v.4.65-90. é publicada em um site notícia intitulada. Perspicazmente. no Hospital das Clínicas. Em registro de campo. Por outro lado. Porém o número de cirurgias realizadas é ainda de doze ao ano. realizado no Hospital no início de abril de 2013. sendo que atende também os casos encaminhados pelo Ambulatório do CRT. jul. p.br/saude/conteudo. onde consta a seguinte informação: Só em 2012. 2014 ISSN: 2236-6725 .phtml?id=1365545> Consultado em 30. foram realizadas 44 operações: 14 foram retoques (cirurgias que são refeitas em decorrência de alguma complicação no primeiro procedimento). foi fundado o AMTIGOS (Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual). Ainda no ano de 2010. o ProSex não deixou de atender esta demanda. Naquele mês./dez. no 2. prescindindo nova licitação para contratação de fornecedor. cujas pacientes prescindem de revisão devido a eventuais ocorrências. obtive a informação do número de cirurgias realizadas no HC. devido a mudanças na equipe. (pois a mídia também mobiliza a agenda de reivindicações). Hoje o serviço continua com estas duas possibilidades de entrada. Revista de Ciências Sociais.06. 10 foram de mulher para homem e 20 de homem para mulher. O HC realiza uma cirurgia ao mês e semanalmente agenda “retoques” de cirurgias já realizadas.gazetadopovo.2014.Diego Souza de Carvalho parte dos movimentos sociais LGBT. A mesma notícia registra a fala da médica Elaine Cosa. novas cirurgias não estavam sendo realizadas devido ao fechamento da empresa internacional fornecedora de moldes e próteses. por exemplo. soube articular-se e responder a esta dupla demanda.com. responsável pela equipe cirúrgica que atende os casos: Fonte: Site A Gazeta do Povo. e das dificuldades em encontrar profissionais habilitados nesta especialidade cirúrgica e do fechamento da empresa fornecedora de materiais clínicos indispensáveis para certos procedimentos. (Site Gazeta do Povo) Percebemos que a mídia tem um estranho efeito de influência. para atender a população transexual.

p. 50) 82| Século XXI. A clínica e seus fluxos do atendimento. no 2. (Biancarelli. mas que expõem à realidade que os duros protocolos no qual novos fluxos não têm espaço prejudicam ao mesmo tempo as equipes profissionais e principalmente as pacientes. Questões que não estavam em pauta e eventualidades diversas surgirão na trajetória. uma categoria que. como a falta de profissionais especializados naquela área cirúrgica.4. ou a falta de algum material pelo fechamento da empresa fornecedora. “Vamos demorar uns 10 anos para conseguir operar todos esses pacientes. que segue o estereótipo da mulher certinha”. suas intenções e a realidade das pacientes que aguardam o atendimento. v. A legislação do CFM indica dois anos de psicoterapia obrigatória para as pacientes transexuais.65-90. na percepção de várias delas. 2010. “Havia bem mais na sala”. 2014 ISSN: 2236-6725 . Infelizmente. fora os novos que surgirem. clínica e identidades O problema é que a agenda do HC está completamente tomada até abril de 2014 . se constroem. compondo tensões no conjunto sistêmico.o que significa que cada paciente deve esperar no mínimo três anos para conseguir ser operado./dez. Várias se apresentaram como transex. esta normatização não prevê porém que podem haver pressões de outros níveis. passiva. não temos como absorver toda essa demanda” Parece haver um fronteira entre o título das notícias. Há uma organização burocrática protocolar que impõe às pacientes a espera. Alessandra perguntou quem era travesti e só duas levantaram a mão. 7 Categorias extra-clínicas e políticas de identidade Num encontro onde mais de 15 participavam. as afastaria do rótulo de travestis e de “transexual submissa. Passado este período de tempo. a partir de diversas demandas oriundas de diferentes meios que não só aquelas trazidas pelos usuários do serviço. Revista de Ciências Sociais. enquanto aguardam a realização da cirurgia. como se observa. jul. descontinuidades e reconfigurações que não passam pela organização e nem sempre são de responsabilidade da administração dos serviços. ela diz. deverão aguardar o surgimento da vaga.Trans-políticas em trans-contextos – transexualidade. p.

em seu efeito de gênero e situação “clínico-hospitalar”. “readequar” o gênero. conceito foucaultiano./dez. de algum modo. pode ser uma nova alternativa categórica. o que diferencie a pessoa transexual da travesti e da transex. enquanto negocia com a equipe dos serviços de saúde modos de se adequar ao diagnóstico e obter sua cirurgia.) Há uma regra aqui – ninguém pergunta o que você é. têm buscado a realização da cirurgia. 232). estratégias de intervenção sobre a existência coletiva em 83| Século XXI. 2014 ISSN: 2236-6725 .Diego Souza de Carvalho A antropóloga Larissa Pelúcio (2005). acho que isso é íntimo e pessoal (. de modo geral. homo. que não se identifica ou se enquadra em nenhuma dessas culturas específicas.4. nos dirá que “ser travesti” é uma “noção de pessoa”. “é difícil se tornar travesti sem estar inserido em uma rede específica” (p. seja o fato de renunciar a algumas de suas autorreferências de corpo. uma noção de pessoa. um conjunto de autoridades consideradas competentes para falar aquela verdade. num sentido maussiano.. submetem-se à categorização do biopoder. Assim. se travesti. encontra-se numa categoria bioidentitária. que se faz num território específico. Essas identidades que. não é a mesma para as pacientes transexuais. e mantido agenciamentos com uma equipe de saúde. que as diagnostica e as qualifica para a realização dos procedimentos. Revista de Ciências Sociais. omitir ou se excluir de vivências e prazeres eróticos anteriores ao ingresso no serviço de saúde. p. pode-se mesmo dizer que a paciente/pessoa transexual. A transex. Talvez. na noite nas ruas e avenidas. trans. v. acatam à determinação clínica.65-90. as quais compartilham de experiências e vivências de uma rede hospitalar. conforme explicitado pelos antropólogos Rose e Rabinow (2006): Sugerimos que o conceito de biopoder procura individualizar estratégias e configurações que combinam três dimensões ou planos: uma forma de discurso de verdade sobre os seres vivos. de quem Alessandra fala em sua entrevista a Biancarelli. nas zonas de prostituição. outra noção de pessoa. Esta rede específica. ao tentar estabelecer uma definição de travesti. no 2. contar aos profissionais de saúde o que “querem ouvir”). gay. (denegar os órgãos sexuais. jul.. capaz de configurar um conceito identitário. “No nosso espaço ninguém dá diagnóstico. hetero”.

no 2. Ora. Revista de Ciências Sociais. a mobilização social que precedeu à publicação da quinta edição do DSM coloca as associações médicas frente a questões complexas como o autorreferenciamentoe mesmo a autonomia da população transexual e das identidades trans. jul. Numa perspectiva internacional. senão o que essas pessoas sabem de si. e modos de subjetivação. Porém. 84| Século XXI. em relação a estes discursos de verdade.transgênero e transex. democracia e humanização do cuidado.65-90. (Rabinow. o governo da França foi pioneiro. p. travesti.Trans-políticas em trans-contextos – transexualidade. querer ou não querer fazê-la. hetero ou homo. se essas categorias extra-clínicas se interpelam no diálogo com a clínica. Todos esses jogos de categorias perpassam às identidades trans. entre os países ocidentais. E por fim. O modo de fazer com que todas e todos tenham voz no complexo sistema de saúde compete aos gestores públicos e à sua compreensão acerca de participação. feminino e masculino. exercendo grande pressão pública para que a Associação Americana de Psiquiatria. 2014 ISSN: 2236-6725 . organizado em 2012 articulou diversasmilitâncias. acadêmicos e movimentos sociais internacionais. 37) Transexual. sob certas formas de autoridade. a se realizarem ou não num longo devir marcam. O movimento STOP TransPathologization. bem como. vontades e direitos são governados por atos médicos. de modo que toda a resposta vem incompleta. v. Rose. órgão médico responsável pela publicação do DSM. clínica e identidades nome da vida e da morte. todas essas verdades do corpo. antecipando esta demanda. 2006. o que dizem a seu respeito. seus corpos. o que o sistema de saúde pode lhes oferecer é o nosológico (um diagnóstico e a possibilidade de cirurgia). quer dizer que a maneira como as políticas de saúde pública utiliza para se comunicar com seu público tem sido vertical./dez. o que ao final não ocorreu. a retirar a transexualidade de seus códigos de diagnósticos. retirasse as identidades trans de seu catálogo de patologias. por meio de práticas do self. em nome da vida ou da saúde individual ou coletiva.4. Ser mulher ou ser homem “de verdade”. p. nos quais os indivíduos podem ser levados a atuar sobre si próprios. em 2010. Ter feito ou não feito a cirurgia.

que não existe sexo pré-discursivo. é produzida dentro dos dispositivos de saber e poder do ocidente. no 2. como tratamento hormonal e implante de próteses.65-90. para além das estratégias de verdade binárias. Há a necessidade de se pensar para essa população medidas de promoção e prevenção em saúde. e neste caso específico. circunstancial. Assim como prescindem também de informações e acesso a meios seguros para realizar os processos estéticos desejados. persiste a prerrogativa que “comunidades”. que o ocidente contemporâneo define em masculino e feminino./dez. Lembrando que por diversos motivos as pessoas procuram o serviço de saúde: as pessoas transexuais e transgênero certamente não procurarão atendimento somente porque desejam uma cirurgia que “reconstrua” seus sexos. que a noção de sexo que temos participa de um construto sócio-histórico. A transexualidade e as demais identidades trans põem em relevo aquilo que a pensadora Judith Butler (1990) afirma em sua obra. jul. a resistência à forma diagnóstico-identitária. p. num transtorno mental? Talvez o que se oculte por trás dessa questão seja a verdade dos sexos. Entendemos a urgência da ruptura com estes marcadores de modelo médicos-clínicos. compreender que as pessoas trans têm necessidades que as atuais políticas de saúde não dão conta. comunidades trans compareçam. Seguindo o raciocínio do antropólogo da saúde João Biehl (2011). contudo. 2014 ISSN: 2236-6725 . que está para além da presumida naturalidade da dicotomia. 284). Há talvez um atrelamento muito forte da Alta Complexidade. deve ser entendida como produto temporal e localizável.Diego Souza de Carvalho Sob a pressão de diversos movimentos sociais pelos direitos LGBT. de terapêuticas que muitas vezes têm mais a ver com as políticas de atenção básica que com a reinvindicação cirúrgica. A sexualidade. isto é. a comunidade científica internacional põe-se de frente à questão: como uma pessoa poderia “trocar” seu sexo biológico sem se enquadrar numa categoria médica.4. por 85| Século XXI. que não se contentam com o deslumbramento tecnológico” (p. as pessoas trans prescindem também de medidas de promoção e prevenção em saúde. Revista de Ciências Sociais. colaborem e participem do planejamento e implementação das “intervenções factíveis. v.

M.4. T. no 2. saber diretamente desta população quais são suas necessidades. v. de que modo poderão as políticas públicas auxiliá-las. In: ARILHA. intervenções que são outras além do invasivo-operacional. M. jul..65-90. 2001. compreendendo os sujeitos e sujeitas enquanto seres humanos. Deve-se ter claro que a saúde humana é bem mais que o oposto da doença. clínica e identidades exemplo. O direito à saúde não pode estar restrito à visão da doença. O enfoque nosológico adotado pelas políticas públicas fere o direito de dignidade dessas pessoas. de S. é um mecanismo de violência institucional.Trans-políticas em trans-contextos – transexualidade. falamos aqui de um reconhecimento das sujeitas e sujeitos trans para além dos muros e leitos hospitalares. apesar de sua difícil sintetização. Pensar possibilidades para além das diagnósticas e quem sabe desdiagnosticar. políticas dirigidas às pessoas. Bauru: EDUSC. e não somente corpos operáveis e remediáveis. E o argumento que somente o diagnóstico pode conferir acesso aos serviços. isto é. Ressalta-se o bom resultado que outros setores da saúde encontram ao estabelecerem parcerias com a sociedade civil. Sociologia da doença e da medicina. se se busca o desenvolvimento do sistema social de saúde./dez. relaciona-se ao bem-estar das pessoas. A saúde humana é um conceito que. “naturalizante”. 86| Século XXI.. não à doença (p. p. Mais que isso. C. PISANESCHI. deve-se escapar da restrita visão biologizante. REFERÊNCIAS ADAM. HERZLICH. é necessário perguntar. 283). ARAN. P. 2014 ISSN: 2236-6725 . A saúde como prática de si: do diagnóstico de transtorno de identidade de gênero às redescrições da experiência da transexualidade. LAPA. “Um modelo mais complexo desse fluxo de gente-doença-política”. que a perspectiva sistêmica da clínica se amplie. E se pensamos num aprimoramento das políticas de humanização da saúde. Revista de Ciências Sociais. ao reconhecimento dos sujeitos e sujeitas em suas especificidades. ao respeito à autonomia e aos diferentes modos de vida. meios regulares e acessíveis ao tratamento que evitem os percalços e prejuízos produzidos por automedicação ou injeções de próteses feitas em espaços clandestinos.. quais providências oficiais as pessoas precisam.

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