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O Que Você Está Lendo - Jean Pierre Sarrazac

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vol. 11, n. 1, dez 2011, p.

212-215
O que você está lendo?
“O que você está lendo?”
Entrevista exclusiva com Jean-Pierre Sarrazac
Nesse momento, minhas leituras estão bem direcionadas. Estou preparando
um ensaio sobre Strindberg, um dos meus três autores-fetiche – os outros dois são
o dramaturgo Valle-Inclan e o romancista Thomas Hardy –; por isso, estou relendo
toda a obra do Strindberg, ao menos uma grande parte, em particular seus romances
autobiográficos, os quais considero constituir o alicerce de sua obra dramática. Em A
defesa de um louco (Plaidoyer d’un fou), por exemplo, ele nos revela os desentendi-
mentos e as lutas que marcaram o fim do seu casamento com sua primeira esposa,
Siri von Essen. É escrito como um drama, com muitos diálogos e descrições que,
assemelhando-se a rubricas, dão lugar a verdadeiras cenas mudas — “dramatículos”,
diria Beckett. Mas o essencial não está aí, mas na noção de defesa — no sentido
de advogar em causa própria, de advogar pro domo — em que o narrador se posi-
ciona como vítima e acusador. Este escrito autobiográfico de autodefesa é o “abre-te
Sésamo!”, a porta de entrada para uma dramaturgia em primeira pessoa, dramatrugia
subjetiva na qual Strindberg viria a ser pioneiro com obras como Pai, Senhorita Júlia e
Credores. Ora, essa dramaturgia do “Eu” é muito presente na escrita contemporânea,
principalmente em Sarah Kane.
Outra narração autobiográfica de Strindberg bastante conhecida é Inferno. Escrito
em francês, esse texto reconstitui a crise psíquica que o escritor atravessou em seu
exílio parisiense. A maioria dos comentadores – dentre os quais o célebre psiquiatra
e filósofo Karl Jaspers – consideram o texto como um simples documento sobre a
suposta loucura, sobre a pretensa paranoia do autor. Curiosa prática que consiste
em julgar a saúde mental de um escritor a partir de um texto que ele escreveu – auto-
biográfico, certamente, mas necessariamente romancizado. Já eu me posiciono no
extremo oposto desses comentadores. O que me interessa em Inferno, o que tentarei
mostrar no começo do singelo livro que tenho a intenção de escrever, é que esse texto
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– com tudo o que se passa de paranormal, com todas as perseguidoras intervenções
das “potências invisíveis” que o narrador relata – é, de algum modo, um laboratório
desse teatro onírico, desse teatro “supranaturalista”, desse teatro de forças invisíveis,
que Strindberg inauguraria com Rumo à Damasco e, depois, com O sonho, A sonata
dos fantasmas e tantas outras peças...
Mas, como você me perguntou quais são minhas leituras desse momento, devo
precisar que tenho muitas outras que me permitem escapar um pouco do âmbito de
Strindberg. Por exemplo, eu leio textos curtos à noite. Estou relendo Os pequenos
abismos (Les Petits gouffres), uma coletânea de contos que a minha esposa, Chris-
tina Mirjol, acaba de publicar na Mercure de France (editora francesa de Strindberg!),
assim como um compilação de novelas de Raymond Carver, o “Tchekhov americano”,
de quem meu amigo, o encenador Jacques Lassalle, adaptou e montou recentemente
dois textos. Essas leituras noturnas têm um certo caráter íntimo, afetivo, além do
aspecto literário. Elas são uma excelente preparação para o sono.
Você perceberá que, falando do meu trabalho sobre Strindberg ou evocando
Tchekhov, eu gosto de me imergir na virada do século XX, época chave, época funda-
dora da nossa modernidade. Eu digo decididamente que se observarmos longa e
fixamente certas cenas de Strindberg, sobretudo d’O sonho, não demoramos para
ver aparecer nelas figuras becketianas, Pozzo ou Krapp ou Winnie... Minha relação
com a escrita contemporânea – que é forte, que é primeira, tanto como autor quanto
como acadêmico – implica em um desvio pelo fim do século XIX e início do século
XX, pela trilogia Ibsen-Strindberg-Tchekhov, por Pirandello e por Brecht, como por
tantos outros... Os autores contemporâneos que me interessam de verdade têm todos
essa relação com as origens de nossa modernidade teatral: Kroetz, o Kroetz de Terras
mortas (Bauern sterben), com o teatro expressionista e, partindo dele, com Strindberg;
Sarah Kane, como eu já disse, com Strindberg; Thomas Bernhard com Strindberg,
Ibsen e Tchekhov, todos muito presentes no palimpsesto de suas peças; Jon Fosse,
cuja escrita eu aprecio particularmente, se inscreve também nessa herança.
Quando montei, em 1974, a primeira peça de Valère Novarina, O ateliê voador
(L’Atelier volant), eu tentei levar em conta a relação secreta que ela mantém com o
teatro de Maiakovski. Não era meu intuito negar a originalidade da obra de Novarina,
e sim instituir uma ligação dialética entre sua novidade extrema e a tradição teatral,
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neste caso o paradoxo – que se pode formular por um oxímoro – de uma “tradição
vanguardista”.
Você me pediu para indicar as teorias teatrais que eu acho interessantes. Difícil de
responder, eu estou tão absorvido pelos trabalhos sobre a “Poética do drama moderno
e contemporâneo”, que dirijo há cerca de 20 anos com Jean-Pierre Ryngaert, Joseph
Danan e toda uma plêiade de jovens professores-pesquisadores que, no começo,
fizeram suas teses sob a orientação de um de nós. Certamente, nosso trabalho teórico,
que resultou em tantas publicações (principalmente na revista Etudes théâtrales, de
Louvain-la-Neuve, na Éditions Circé, ou na Actes Sud e Actes Sud-Papiers), realiza-
-se em diálogo com outros pesquisadores ou grupos de pesquisa. Estou me referindo
sobretudo a Denis Guénoun, que desenvolveu com a maior acuidade a problemática
da relação entre “Ação e Ator” – e do fading do personagem – no teatro moderno e
contemporâneo. E há certamente a famosa teoria do “teatro pós-dramático”, tal qual
Hans-Thies Lehmann a desenvolveu. Eu já tive a oportunidade de expressar meu
ponto de vista sobre essa teoria em um número da revista Etudes théâtrales que dirigi,
número dedicado à “Reinvenção do drama (sob a influência da cena)”. Se, por um
lado, eu acho ricas e pertinentes as análises que Lehmann faz de espetáculos que eu
chamaria mais de “paradramáticos” ou “extradramáticos” do que de “pós-dramático”;
por outro, eu acho que esse nome, que essa etiqueta de “pós-dramático”, implica na
ideia já rebatida – e profundamente equivocada – do fim, da morte do drama. Repassa-
-se hoje de boca à boca a noção do “pós-dramático”, tal como ocorria outrora com a
noção de “teatro do absurdo”. A um tal ponto que não se sabe mais muito bem o que
ela abarca. Hans-Thies Lehmann é um potente teórico da dissociação do teatro e do
drama, suas análises de espetáculos de Bob Wilson, Lauwers, Jan Fabre são sem
dúvida notáveis, mas a noção de pós...dramático me parece duvidosa. Uma chave que
abre portas demais...
Do teórico de teatro, eu passo ao filósofo e à ajuda que ele poderia nos trazer
para melhor pensar o teatro. Comecemos por Jaspers; eis a atitude mais discutível: a
do jovem (é uma desculpa) Jaspers diante de Strindberg, que considera (uma parte
d’) a obra desse genial escritor somente como um documento estimulante para suas
teorias – tendo relação com, entre outros, Holderlin e Van Gogh – sobre a arte e a
loucura psicótica. Guardadas as proporções, eu penso nos eletrochoques que Artaud
deve ter levado em Rodez: o filósofo e o psiquiatra (que casamento!). Em seu livro,
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Jaspers dá um eletrochoque não em Strindberg, que já tinha deixado este mundo
havia muito tempo, mas em seu texto autobiográfico Inferno!
O que podemos esperar do filósofo?... Idealmente, que ele seja um artista e
que pense a arte de dentro. É o caso de Nietzsche. Paradoxalmente, poder-se-ia dizer
o mesmo de Platão, ainda que ele tenha pretendido expulsar o poeta da República.
Há também Montaigne, Diderot, Lessing... Eles não são muitos. Ao que me parece,
Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy se inscrevem nessa mesma linhagem do
filósofo-artista.
Quanto a Deleuze, cujas análises são tão preciosas, mesmo que tenha pensado
tão pouco sobre o teatro – porém, seus trabalhos sobre o cinema são sublimes –, me
parece ser um filósofo-amigo do artista, que não considera a obra do artista como um
documento a seu dispor, mas que é atento ao pensamento da obra artística, sendo
esse pensamento da obra – Beckett ou Bacon – aquilo que nutre sua reflexão filosófica.
Totalmente diferente parece ser, a meu ver, a atitude do filósofo Alain Badiou, que
organiza uma espécie de alistamento do artista. Ele decreta que é necessário escrever
comédias – ou mesmo commedie dell’arte – contemporâneas, e os dramaturgos,
encenadores e atores deveriam simplesmente fazê-las! É verdade que ele mesmo
coloca a mão na massa como autor de teatro. O que constitui, como queiram, tanto
uma desculpa como um agravante.
Relendo o que escrevi, percebo que já abordei a questão essencial das relações
entre teatro e filosofia – Denis Guénoun dedicou a esse tema páginas bastante escla-
recedoras de modo bem brincalhão e caricato. É preciso talvez que eu retome um dia
esse tema.
Jean-Pierre Sarrazac
Carlucet, 23 de setembro de 2011.
Entrevista e tradução: Rafaella Uhiara.
http://www.turindamsreview.unito.it/link/Genese_de_la_mise_en_scene.pdf